1987-0.002.528-3
INTERESSADO: SOCIEDADE MELHORAMENTOS CHÁCARA FLORA
ASSUNTO: Chácara Flora. Natureza jurídica da vias, praças e logradouros decorrentes do fracionamento da gleba na década de 1920, aprovado pela antigo Município de Santo Amaro
Informação 1552/2016-PGM.AJC
PROCURADORIA GERAL DO MUNICÍPIO
ASSESSORIA JURÍDICO-CONSULTIVA
Senhor Procurador Assessor Chefe
1 - Trata-se, em resumo, de investigar a correção de remoto entendimento segundo o qual seriam públicas as vias, lagos, praças e espaços internos da Chácara Flora, assunto que há décadas tramita na Prefeitura sem solução adequada. Não obstante a reiterada afirmação administrativa do caráter público dessas áreas, adquiridas pelo Município por concurso voluntário, repetem-se circunstâncias ponderáveis, de natureza urbanística e ambiental, a aconselhar de forma sistemática a preservação do muro que, circundando a Chácara, impede a integração de seus logradouros à malha viária da cidade. O CONPRESP, por exemplo, deixou de abrir processo de tombamento para preservação das características decorrentes da especial implantação desse loteamento por entender que o Decreto estadual nº 30.443/89 já designaria suas ruas e praças como patrimônio ambiental, imunizando-o contra os males da expansão urbana (fls. 541/550)1; para ilustrar o modo peculiar de inserção da Chácara Flora na cidade, convém transcrever passagens do parecer técnico do DPH de 2014 (fls. 506/530) aconselhador da preservação do ambiente cuja incolumidade é mantida justamente pelo muramento que o envolve:
"(...). Tanto é a relação com as Cidades-Jardins que a Sociedade Melhoramentos Chácara Flora, criada em 1943, tinha como objetivo a manutenção dos elementos que a faziam caracterizar como tal. Diz-se que objetiva 'a manutenção, conservação e melhoramento de todos os bens em comum na 'Chácara Flora' especialmente suas ruas, praças, jardins e logradouros, já existentes e que venham a existir. (...). Essa sociedade existe até hoje e zela, por meio do Regimento Interno da Sociedade Melhoramentos Chácara Flora, pela manutenção de certas características, especialmente ambientais, da área. Assim sendo, a área se mantém bastante preservada em seu valor ambiental, tendo grande diversidade biológica e abundância de vegetação.(...). Foi realizada uma visita técnica ao local para analisar esses atributos, e verifica-se que o loteamento se mantém como exclusivamente residencial e com significativa densidade arbórea. As ruas são de paralelepípedo e há dois lagos no perímetro, com duas nascentes e diversos parques, como pode ser verificado no relatório fotográfico anexo. (...)
Em visita técnica, verificou-se que se mantém, no interior do lote, os parâmetros originais e ambientalmente importantes da área, como alta densidade arbórea, recuo e limite de gabarito de altura. Auxiliou para isso o fato de haver um regulamento interno da Sociedade Melhoramentos Chácara Flora, que prevê uma aprovação pela administração de loteamento prévia ao início efetivo das obras, inclusive se posterior à aprovação municipal. (...)"
2 - Ao longo do tempo, razões técnicas dessa mesma ordem vêm inibindo a Administração de postular judicialmente a derrubada dos bloqueios de modo a franquear livre acesso às vias não pavimentadas da Chácara Flora. Nenhuma outra justificativa, senão a necessidade principiológica de entregá-los à fruição pública, é apresentada episodicamente para estimular a adoção da medida drástica. Instalou-se, assim, certa tolerância administrativa com o enclave urbano que, em seus recônditos, abrigaria o patrimônio do Município de São Paulo. Em 1976, por exemplo, a COGEP, órgão então incumbido do zoneamento da cidade, desaconselhou a demolição dos muros, opinando pela permanência da Chácara tal como estava — e tal como ainda hoje se encontra —, uma vez que, dentre outros, "a Prefeitura, pelo espaço de meio século, sempre considerou as ruas internas da 'Chácara Flora' como vias particulares e aceitou os portões de entrada" e que "as vias internas da chácara, na sua maioria com largura variável de 6 a 9 metros, não pavimentadas a fim de oferecerem a maior absorção possível de água em benefício da exuberante vegetação existente, não oferecerem nenhuma condição técnica ou de necessidade viária de ligação entre as ruas Visconde de Porto Seguro e Alcatrazes que contornam a chácara" (fls. 680). Em 1978, o gabinete do Prefeito sugeriu a realização de "estudos pela COGEP das exigências a serem impostas, tais como a possível adaptação do condomínio a ser implantado à sistemática estabelecida para os conjuntos residenciais R.3", de que decorreria a "obrigatoriedade da manutenção das vias de comunicação e reversão dessas áreas ao patrimônio municipal, no caso de dissolução do condomínio" (fls. 709/710); a sugestão não foi acatada (fls. 715/716).
A situação, porém, exige desfecho.
3 - Afirma-se administrativamente, em resumo, que a incorporação desses bens ao patrimônio público teria talvez ocorrido em 1919 com a aprovação do loteamento pela Câmara do Município de Santo Amaro, município anexado em 1932 ao de São Paulo; o poder público, ou na data mais distante de 1919, ou na promulgação da Lei municipal nº 4.371/53, adquirira por concurso voluntário os logradouros da chácara que, por sucessão, passaram a integrar o acervo de bens imóveis paulistanos. O longuíssimo tempo decorrido sem alteração do statu quo conspira fortemente contra essa conclusão, sobretudo se for preciso manejá-la visando à obtenção de provimento jurisdicional que determine a derrubada de muro e cancelas quase centenários.
4 - A par disso, é incontroverso que os logradouros em questão jamais contaram com melhoramentos ou serviços públicos de iluminação e limpeza, incumbindo-se os próprios moradores, por meio da Sociedade Melhoramentos Chácara Flora, de promover, segundo seus estatutos, a manutenção, conservação e melhoramento de todos "os bens em comum"2.
5 - Com o propósito de melhor investigar a gênese do impasse atual, obtivemos a cópia dos autos do procedimento administrativo em que se cristalizou o entendimento de angustiante efetivação. Ao revolver as muitas camadas de sedimentos burocráticos acumuladas ao longo de décadas, verificamos com surpresa que, em verdade, a posição municipal foi adotada antes por comodidade do que por convicção jurídica. Recapitulemos.
6 - Em março de 1962, o então Secretário dos Negócios Internos e Jurídicos, Dr. Luiz Domingues de Castro, acolheu parecer de PATR conclusivo no sentido "de não se enquadrarem os logradouros da Chácara flora nem na oficialização declarada pela Lei nº 4.371/53, nem no domínio público municipal por se tratar de loteamento realizado anteriormente ao advento do Decreto-lei nº 58, de 10/12/1937" (fls. 571/572). A opinião de PATR, importante frisar, foi subscrita pelo procurador Eduardo Vianna Motta que idealizou e sustentou com sucesso perante o Judiciário, em benefício do Município de São Paulo, a tese de aquisição pelo Poder Público de áreas livres de loteamentos pela ocorrência do concurso voluntário.
7 - Encaminhados os autos a FISC para proceder ao lançamento dos correspondentes tributos imobiliários, aquele órgão, depois de cinco anos, passou subitamente a sustentar, contrariamente a PATR, o caráter público das vias, livrando-se, dessa forma, das dificuldades práticas inerentes à tarefa que se lhe impunha3: em parecer datado de dezembro de 1967 (cinco anos depois), passou a afirmar o procurador de FISC, Ayrton Luis Marchiori, que "essa grande extensão de ruas e avenidas pertencem ao domínio municipal"; ponderava, revelando o verdadeiro propósito que sua conclusão encobria: "Como, pois, à vista da doutrina imperante, pretender-se que quilômetros de ruas, de loteamento existente em plena zona urbana, sejam considerados de domínio particular? E não é possível que para justificar tal absurdo, pretenda-se que a Municipalidade pratique a heresia administrativa de lançar imposto territorial sobre tais ruas." (fls. 585/595, destacamos)
8 - A opinião de FISC foi partilhada por JUD. Seguiram-se réplicas, contraditas, refutações, retruques, até que, ao cabo desse cansativo debate, o Secretário dos Negócios Internos e Jurídicos da época, Dr. Carlos Eduardo de Camargo Aranha, determinou em 3 de fevereiro de 1970 a remessa do processo a JUD "para intentar a ação cominatória, pois, (em suas palavras) concluí que a matéria somente poderá ser esclarecida na esfera do Judiciário" (fls. 639, verso). O então Secretário, em vez de eleger uma das teses antagônicas submetidas ao seu crivo, mantendo, ou não, a orientação vigente desde março de 1962, delegou ao Judiciário a função consultiva que lhe competia exercer, despindo-se de suas prerrogativas, remetendo as partes às vias ordinárias.
9 - A divergência era de algum modo imprópria uma vez que a posição de PATR, pela especificidade da matéria, não poderia suscitar oposição de FISC e JUD. Tais órgãos, é bom lembrar, não possuíam a feição hoje ostentada pelos departamentos desta PGM, mesmo porque inexistia PGM à época4: eram órgãos de caráter executivo, vinculados a Pastas diversas, que abrigavam Procuradores em seus quadros. A controvérsia surgiu, e isso é curioso, porque a Secretaria de Finanças, Pasta a que FISC assistia, justificava sua inércia na arrecadação do tributo pela dificuldade na identificação do sujeito passivo do imposto a ser lançado: "que, gratia argumentandi, se essa tributação fosse admissível — o que se contesta — ainda assim seria impraticável por faltar precisamente o sujeito passivo da incidência fiscal, visto que os lotes em que se desmembrou a totalidade da área ou gleba primitiva se tornaram propriedades distintas e independentes entre si, posto que que comum a origem deles, ao mesmo tempo que as ruas passaram automaticamente ao domínio do Município sem necessidade de outorga de instrumento público e sem que os múltiplos sucessores adquirentes dos referidos lotes sobre elas tenham ou possam pretender direito de qualquer espécie" (fls. 604/605).
10 - Ao escolher a saída administrativa menos trabalhosa — e mais onerosa para erário —, sacrificou-se sem cerimônia a abalizada posição de PATR, defendida por Procuradores que consagraram em juízo a tese de aquisição por concurso voluntário, tese essa que no episódio da Chácara Flora curiosamente fundamentava a opinião contrária dos contendores de FISC e JUD. O paradoxo foi bem assinalado pelo Procurador Walter Waltenberg de Faro, então chefe de PATR 22:
"(...) O que nos pareceu estranho foi sua discordância além das fronteiras do campo jurídico, adentrando no da autonomia das convicções pessoais, que todos nós preservamos sagradamente independente. Todavia, embora qualquer delas não identifique por sua denominação jurídica, o certo é que ambas estão assentadas no mesmo fundamento, o instituto do 'concurso voluntário', cuja verificação vem de ser negado na primeira, mas acolhido na segunda. Como, porém, a tese do concurso voluntário veio a ser proficientemente revivida em nosso meio administrativo exatamente pelo Dr. Eduardo Viana Mota (sic), que viu seus estudos publicados na Revista dos Tribunais, volumes 332 a 340, notadamente do 336 em diante, trabalho esse que tem servido de orientação aos nossos próprios juízes; como os pareceres de Fisc. e Jud., data vénia, não estão absolutamente conformes com os próprios exemplos e lições que citam, bastando ver que o de Fisc. invoca em abono de sua conclusão a decisão do caso de 'Ilha Porchat', de pressupostos diversos do presente por ser posterior ao próprio Decreto-lei nº 58/37, diploma esse cuja aventada incidência a situações anteriores viola o postulado constitucional do respeito, pela lei nova, às situações jurídicas definitivamente constituídas (...)". (fls. 612/613, destacamos)
11 - Dada a autoridade de que se reveste, transcrevemos passagens do lapidar pronunciamento do Procurador Eduardo Vianna Motta de outubro de 1968 que não apenas, a nosso ver, revela didaticamente a inocorrência do concurso voluntário no caso específico, como também, com certa ironia, lembra que o memorial apresentado pelo Município na apelação nº 125.745 — cujo paradigmático julgamento pelo TJSP, em maio de 1964, iniciou a jurisprudência que grandemente lhe veio favorecer5 — mencionava justamente a Chácara Flora como exemplo a contrario sensu de parcelamento em que não se verificara a afetação das vias internas; é curioso, aliás, reconhecer nesta quadra do século XXI a atualidade da exortação com que o parecerista encerra sua alocução:
"No processo se tem discutido: as ruas do loteamento 'Chácara Flora' são particulares ou são públicas? (...)
Passando a ser discutido nos autos o problema da tributação dos leitos das vias existentes dentro do loteamento, o procurador Ayrton Luis Marchiori lançou o parecer de fls. 33 e 44, e o qual considera nosso pronunciamento contrário ao interesse público, e lamentamos ter de dizer que, por mais que lêssemos o referido parecer do Dr. Marchiori, nada encontramos nele que pudesse contraditar os fundamentos das nossas conclusões. (...) As decisões trazidas à colação, portanto, são impertinentes e em nada dizem respeito a ruas registradas como particulares de acordo com o direito positivo expresso. O Dr. Bettino de Deo funda, outrossim, o caráter público das vias internas do loteamento na impossibilidade ou dificuldade de tributá-las, por falta de legislação apropriada. Entendemos que tal dificuldade não é suficiente para derrogar o que está expresso na legislação municipal: o caráter particular das vias e o dever de fechá-las. (...) Ora, a causa da taxa é a existência do serviço público colocado à disposição do contribuinte, e não o caráter privado ou público da via. Por isso mesmo é que no nosso parecer concluímos pela ocorrência de hipótese de incidência, independentemente do caráter privado das vias e da não efetiva prestação de serviços.
Relativamente ao estado da doutrina, acreditamos ter examinado em profundidade a questão em trabalho publicado nos nºs 332 a 340 da Revista dos Tribunais, como também o estado da jurisprudência em extenso memorial, apresentado à egrégia 4ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça deste estado, nos autos a apelação nº 125.745. Retomando, entre nós, após os trabalhos memoráveis do insigne Philadepho de Azevedo, a tese do concurso voluntário, conseguimos fosse ela consagrada pela nossa Justiça. E o direito por nós defendido e sustentado, e afinal proclamado pela jurisprudência, assim se articula: 1º) - Os bens públicos de uso comum são propriedade da pessoa jurídica que detém a sua administração;
2º) - Os bens públicos adquirem-se por meios outros que os da legislação civil e dispensam escritura pública e transcrição para engrossarem o cabedal administrativo;
3º) - Quando um particular obtém licença administrativa para arruar e lotear, com a condição de transferir para o patrimônio público as áreas reservadas para ruas, praças e espaços livres, o negócio pelo qual se opera essa transferência não é de estatuto civil, mas de direito administrativo e denomina-se concurso voluntário;
4º) - O concurso voluntário, como modo de aquisição de bens pelo poder público, independe de forma especial e transcrição no registro; basta que haja inequivocidade quanto à oferta pelo particular e à aceitação pelo poder público (Memorial na Apelação 125.745, pág. 10). Naquele memorial, que é a carta de defesa do patrimônio público, escrevemos contraditando os que pretendiam outorgar ao poder público uma mera e vaga administração dos bens de uso comum: '(...). Por isso mesmo Lobão, depois de afirmar que uma rua para poder dizer-se pública deveria ter assento em solo público, declara públicas as vias 'entre casas e entre prédios particulares, que supõem feitas em porções, que os donos dos adjacentes demitiram dos seus para construírem. Se consta do tempo, em que assim foram construídas para usos particulares, se reputam particulares. Se, porém, não consta da memória dos viventes do princípio da sua construção, se reputam públicas, ainda que principiando em lugar público, finalizam sem êxito para lugar público' ('in' 'Notas a Mello', vol. III cap. II, 816). 'O velho praxista mostra bem que o nosso direito conhece ao lado das vias públicas as particulares. E que as públicas, no sentido de bem público, pressupõem assento em solo público, isto é, de propriedade do estado. E também que todas as vezes em que o poder público tiver de abrir caminhos novos, terá de adquirir a área necessária, indenizando o particular prejudicado.
'Em São Paulo, até o advento da lei municipal nº 4371, de 17 de abril de 1953, havia um regime legal, de inscrição de ruas particulares, regulado pelo Ato 1013, de 13 de fevereiro de 1936. Essas ruas particulares deviam ser muradas e providas de portões, gue se pudessem fechar a determinadas horas. Quem não conhecerá a aprazível 'Chácara Flora', cuias ruas são particulares?6
'Via pública, no sentido de bem público, portanto, é somente aquela cujo solo pertence numa relação de propriedade à pessoa de direito público' (memorial citado, págs. 13, 14 e 15) (...).
Não cabe, no caso dos autos, pretender fundar o caráter público das vias no concurso voluntário, pois o registro na forma do ato 1013 caracterizou a falta de oferta. O caráter público só poderá decorrer de uma afetação, de um apossamento administrativo a ser praticado, se não houver ato formal de desapropriação.
Se há um interesse viário em derrubar os cancelos do loteamento, pratique-se o apossamento. Poderão os particulares invocar o artigo 161 do Código Penal? Ou preferirá a Municipalidade usar das vias judiciais, quando, então, não sabemos como fundar os seus direitos?" (Fls. 616/618, destacamos)
12 - Pois bem. Passados cinquenta anos dos eventos históricos acima relatados, é verificável empiricamente que a tese de domínio público conduziu o Município a situação que lhe é francamente desfavorável7. Jamais se tributou a área, porque pública, e não parece materialmente possível que o Município venha a empolgá-la, tendo em vista os impedimentos de ordem ambiental e urbanística que sobre ela pesam. A entrega das vias internas ao tráfego público, como preconizado entusiasticamente à época8, exigiria o hoje impossível alargamento de suas reduzidas dimensões, com a derrubada de mata, desapropriação de parcela dos lotes lindeiras, assoreamento de lagos e ferimento às singulares características da Chácara Flora objeto de grave tutela normativa.
13 - Importante destacar que o tempo não deteriorou os fundamentos que, hauridos da teoria do concurso voluntário laboriosamente construída por PATR, alicerçaram a conclusão de 1962 pelo caráter particular das vias da Chácara Flora. Muito pelo contrário, esta PGM deles se serve fielmente na definição da natureza jurídica de logradouros derivados de loteamentos anteriores à vigência do Decreto-lei nº 58/379: a aquisição de domínio pelo Poder Público, nesses casos, demanda elemento volitivo do loteador e da administração (por isso voluntário o concurso de que tratamos10), consistente aquele no oferecimento das vias à livre circulação e, este, na sua afetação ao uso público, circunstâncias jamais conjugados na hipótese por força do incontroverso, obstinado e inconsútil cercamento da gleba. A atualidade dessas premissas é revelada, por exemplo, em recentes manifestações desta AJC, de lavra dos não menos talentosos procuradores José Fernando Ferreira Brega e Ricardo Gaúche de Matos, que em estudos de domínio submetidos à sua análise prestam reverência à disciplina organizada; com rigor científico por Eduardo Vianna Motta:
"No regime anterior ao Decreto-Lei n. 58/37, a aquisição das áreas correspondentes aos logradouros dependia, em síntese, da afetação de tais espaços, como decorrência do chamado concurso voluntário, conforme brilhante estudo de antigo integrante da advocacia pública paulistana. Aplicando-se tal entendimento é possível chegar às conclusões alcançadas no parecer de fls. 392/400, cuja clareza certamente é prejudicada pelos inúmeros elementos fáticos ali referidos. De todo modo, deve-se afirmar, em resumo, que a simples aprovação do loteamento, no regime anterior ao Decreto n. 58/37, não podia ensejar sua transferência ao domínio público, mas somente a efetiva abertura dos logradouros e oferecimento destes, já abertos, à aceitação da Municipalidade. Isso tudo exige uma demonstração de elementos fáticos pertinentes à abertura ou ao oferecimento dos logradouros, o que não se dá no caso dos loteamentos aprovados no regime posterior a 1937. Não basta, pois, o ato formal de aprovação, é necessária a averiguação dos aspectos negociais envolvidos, o que somente pode ocorrer mediante a análise dos elementos probatórios pertinentes." (José Fernando Ferreira Brega, Informação nº 0465/2014-SNJ.G)
"No caso dos autos, o proprietário do terreno sempre manifestou a sua oposição à transferência da via ao domínio público, afirmando que jamais pretendeu executar um plano de parcelamento do solo no local, tanto que jamais alienou individualmente qualquer dos prédios edificados no terreno a terceiros. Portanto, parece-me que a averbação da passagem, promovida de ofício pela Municipalidade, foi indevida, uma vez que o logradouro não foi oferecido ao domínio público, circunstância que afasta a caracterização do concurso voluntário. (...) Já a ausência de tributação do leito da passagem não altera a conclusão alcançada, devendo a Secretaria de Finanças promover a regularização do lançamento e a cobrança dos valores devidos relativos aos exercícios anteriores, confirme também ressaltado no precedente mencionado (Ementa ne 5463)". (Ricardo Gaúche de Matos, informação nº 222/2016-PGM.AJC, Ementa nº 11.675)
"Esse entendimento anterior está relacionado, basicamente, à forma de aquisição do domínio de logradouros previstos em plantas de loteamento anteriores ao regime do Decreto-Lei n. 58/37. Foi somente com a edição de tal ato normativo que surgiu a possibilidade de transferência de imóveis ao Poder Público por força de atos formais como a inscrição e a aprovação do parcelamento, conforme observado na Informação n. 4175/2007 - SNJ.G, constante do p.a. n. 2006-0.202.834-1.
Contudo, no regime anterior ao Decreto-Lei n. 58/37, a aquisição das áreas correspondentes aos logradouros dependia, em síntese, da afetação de tais espaços, como decorrência do chamado concurso voluntário, conforme demonstrado na Informação n. 465/2014 SNJ.G, constante do p.a. n. 2012-0.329.845-1. Assim, nem mesmo a aprovação do loteamento, no regime anterior ao Decreto nº 58/37, podia ensejar a transferência de áreas ao domínio público, mas somente a efetiva abertura dos logradouros e oferecimento destes, já abertos, à aceitação da Municipalidade. Nesse regime, pois, a aquisição de áreas pelo Município ocorria com fundamento na afetação decorrente do concurso voluntário, caracterizado com elementos fáticos, e não com base em atos formais como a aprovação ou inscrição do parcelamento do solo." (José Fernando Ferreira Brega Informação nº 1066/2014-SNJ.G)
14 - É de pouca valia o argumento de que seriam públicas as vias internas da Chácara Flora porque a Lei nº 4.371/53, que promoveu a oficialização em massa de logradouros do Município de São Paulo, as teria incluído em seu extenso rol. A oficialização, isoladamente considerada, não tem o condão de acarretar a perda da propriedade privada em favor do Poder Público. Em hipótese similar, que também não revelava circunstâncias fáticas de afetação, assentou o Judiciário, e também esta PGM, a função essencialmente administrativa da referida Lei nº 4.371/53:
"(...) Em continuação, SEHAB encaminhou a SGM minuta de projeto de lei excluindo o referido logradouro dos efeitos da Lei 4.371, de 17 de abril de 1953, e da Lei 5.969, de 27 de abril de 1962, já que o arquivamento do presente dependeria da sanção da lei cogitada por aquela Pasta.
Entretanto, por entender desnecessária a alteração legislativa proposta, SGM/ATL resolveu indagar desta PGM se as providências requeridas na espécie não se teriam esgotado com a edição do Decreto nº 50.611/2009 (que excluíra a Rua José Paulo Mantovan Freire dos efeitos da oficialização promovidos pela referida Lei 4.371). Não é mesmo o caso de encaminhar à Câmara Municipal a propositura sugerida por SEHAB.
O Judiciário já fixou a assertiva imutável de que 'a oficialização da prefeitura tão somente significa seu reconhecimento para fins de identificação postal e lançamento fiscal. Não abrange a transferência da propriedade. Não há razão jurídica para se considerar a referida rua particular como bem público para efeito do exercício do poder de polícia municipal'.
(...) O princípio da segurança jurídica não seria afetado nos moldes previstos por SEHAB: o Condomínio Vila Normanda figurou como parte na ação que reconheceu a titularidade da área em seu favor, e a edição do Decreto nº 50.611/2009 é bastante para esclarecer eventual munícipe intrigado com a ocupação particular da via. Mais não fosse, tanto a Lei nº 4.371/53 (art. 4º) quando a Lei nº 5.969/62 (art. 4º) dispõem de modo expresso que ficará 'automaticamente excluído desta oficialização o logradouro cuja incorporação ao Patrimônio Municipal seja contestada ou sobre o qual haja contestação pendente ou importar no pagamento de indenização a terceiros'.
A alteração proposta por SEHAB conspiraria contra o automatismo da exclusão criado pelo próprio legislador. (...)" (Antonio Miguel Aith Neto, informação nº 1854/2009-PGM.AJC)
15 - Registre-se ainda a impropriedade de a opinião de PATR, depois de proferida, ter sido confrontada por órgãos estranhos ao tema. É reprovável o exercício administrativo de competência alheia, sobretudo para suprimir a competência do órgão legalmente incumbido de exercê-la. Bem por isso o art. 4º do Decreto nº 51.714/2010, que dispõe sobre o processo administrativo na administração pública municipal, estabelece que "a competência é irrenunciável e exercida pelo agente público a que foi atribuída como própria, salvo os casos de delegação e avocação legalmente admitidos". Esse princípio, contemporâneo aos primórdios da elaboração doutrinária do Direito Administrativo, foi legalmente consagrado na própria década de 1960 como causa de nulidade de ato administrativo. A Lei nº 4.717, de 29 de junho de 1965, que regulou a ação popular, estabeleceu que "a incompetência fica caracterizada quando o ato não se incluir nas atribuições legais do agente que o praticou"11. Não se incluía então nas atribuições legais de FISC promover estudos de domínio. O respeito às competências próprias é sublinhado por esta PGM nas vezes em que consultada a respeito:
"Ora, é exclusiva de SJ a competência para "exercer funções jurídico-consultivas em relação ao Poder Executivo e à Administração em geral" (art. 2º, IV, da Lei 10.182/86 e art. 3º, IV, do Decreto nº 27.321/88). Excêntrico, portanto, do ponto de vista institucional, e mesmo do da Lei 8.906/94, que a CEUSO pretenda instaurar conflito administrativo relativamente a tema que não lhe é próprio.
Em verdade, porém, não há conflito possível porque irrelevante, sob esse específico aspecto, a opinião daquele colegiado, favorável, na hipótese, à dispersão do patrimônio público: Sutor, ne supra crepidam.
Desse modo, sugerimos proceder à devolução do presente a SEHAB para regular prosseguimento com a manutenção do despacho de fls. 411. Deverá aquela Pasta, em conjunto com a Subprefeitura de Pinheiros, verificar, conforme apontado às fls. 512/514, se as obras executadas no imóvel em questão correspondem efetivamente aos projetos aprovados, comunicando eventuais irregularidades a esta PGM visando à adoção de medidas judiciais que se fizerem necessárias à sua correção." (Antonio Miguel Aith Neto, informação nº 727/2009-PGM.AJC)
16 - Por outro lado, os embaraços levantados para a tributação da área não mais parecem existir. É certo que cabe à atual Secretaria de Finanças, pela competência, averiguar a base imponível, o sujeito passivo e o valor do tributo imobiliário. Os documentos coligidos neste procedimento, contudo, permitem antever a Sociedade Melhoramentos Chácara Flora como titular de domínio privado — como sucessora da Dawe, Goulart & Cia., loteadora do empreendimento (fls. 842/845) —, bem como a solidária sujeição passiva dos proprietários dos lotes na proporção com que respondem às despesas ordinárias da Chácara (fls. 851/853), administrada de modo condominial pela referida associação que para tal fim os congrega, consoante autorizado pelo art. 34 c/c art. 124, II, do CTN. Aliás, essa cogitação é possível porque os próprios interessados anuíram expressa e formalmente a tal sujeição, conforme deflui de seu requerimento de fls. 725/735:
"(...) A título de instrução do presente processo, foram contratados dois estudos técnicos, elaborados com a melhor tecnologia e pelos mais conceituados especialistas do mercado. Um deles fornece o diagnóstico ambiental e urbanístico da Chácara Flora, contendo, além de um apanhado histórico, o desenho urbanístico do empreendimento e estudos dos meios abióticos (fauna e flora) e do meio abiótico (estudo anexo).
O estudo mais recente faz a análise fundiária mais precisa possível, pela técnica da fotogrametria aérea, concluindo pela existência de um imóvel único, correspondente à união das vias de trânsito, das praças e dos lagos, bens de uso comum, com área de 99.869,813 m2 (mapa anexo), considerando a área total da Chácara como sendo de 884.066,065 m212.
Ambos os trabalhos, além de, por um lado, confirmarem a natureza particular dos bens de uso comum dos moradores da Chácara, por outro, serão úteis a que o Município possa, a partir do reconhecimento dessa natureza, passar a cobrar IPTU da área, o que deverá ocorrer, de preferência, diretamente aos associados (proprietários) e na proporção em que já vem arcando com as despesas ordinárias (conforme planilha anexa). Valendo, a propósito, consignar que, desde o início do presente processo, os proprietários associados em momento algum se opuseram a pagar o imposto predial e territorial relativo às áreas de uso comum, de acordo com a proporcionalidade aplicável às despesas comuns iá rateadas rotineiramente." (fls. 734, destacamos)
17 - É de acrescer que a controvérsia não teria surgido se vigorasse à época a Lei de Responsabilidade Fiscal. As dificuldades práticas envolvidas no lançamento do IPTU não podem servir de escusa para que se deixe de arrecadá-lo, sobretudo se a alternativa a isso for, como na hipótese, a forçosa condescendência com o uso privado, e gratuito, da área supostamente pública.
18 - Do que acima brevemente se expôs, é possível sumarizar os seguintes postulados:
(a) a tese de aquisição da vias de circulação da Chácara Flora por concurso voluntário deve ser afastada pelos motivos superiormente alinhados na década de 1960 por PATR, órgão legalmente incumbido de fazer tal análise: o loteamento, anterior ao Decreto-lei nº 58/1937, não foi implantado sob a condição de transferir seus logradouros para o patrimônio público, inexistindo o requisito da "inequivocidade quanto à oferta pelo particular e à aceitação pelo poder público";
(b) a natureza pública ou particular de imóvel não é estabelecida segundo o grau de dificuldade em se promover o lançamento de tributo que sobre ele recaia13;
(c) a conclusão administrativa de março de 1962 (fls. 571/572) pelo caráter particular das vias de acesso da Chácara Flora merece prevalecer sobre o despacho de fevereiro de 1970 (fls. 963) que, superficialmente, determinou o ajuizamento da ação cominatória jamais promovido pelo Município;
(d) as características originais da Chácara Flora estão preservadas, inclusive no que tange à inocorrência de afetação fática de seus logradouros ao uso público14, circunstância facilmente verificável nos elementos que instruem o presente e no caderno "Diagnóstico Ambiental/Urbanístico da Chácara Flora" que passa a acompanhar o presente (TID nº 15.535.512);
(e) a perspectiva emprestada pelo tempo permite vislumbrar com clareza o acerto das eruditas manifestações de PATR colhidas ao longo da década de 1960, em especial às do Procurador Eduardo Vianna Motta, que legou ao Município de São Paulo a vitoriosa tese de aquisição pelo Poder Público, por concurso voluntário, de áreas livres de; loteamentos anteriores ao Decreto-lei nº 58/37.
19 - Assim, chancelando a opinião daqueles colegas que profetizaram o emaranhado em que se envolveria o Município a partir da imprópria afirmação do domínio público das áreas em questão (a saber, Eduardo Vianna Motta, Silvio Lacerda Gomes Cardim, João Ataliba Marcondes Machado, Eduardo Carr Ribeiro, Luis Domingues de Castro, Walter Waltenberg de Faro, Will de Azevedo Marques, João Francisco de Lima, Antonio Fogaça Simões e R. C. Giudice), e em consonância com o pronunciamento de 1962 do então Secretário dos Negócios Internos e Jurídicos (fls. 572), deve ser reafirmado conclusivamente o caráter particular dos logradouros da Chácara Flora, loteamento realizado anteriormente ao Decreto-lei nº 58/1937, dada a inocorrência, na hipótese, de concurso voluntário ou de afetação de tais vias ao uso público.
20 - Acolhido o parecer, deve o presente ser encaminhado com urgência a SF para proceder ao lançamento de IPTU sobre a área de domínio privado, abrangendo os exercícios fiscais não atingidos pela decadência.
São Paulo, 13/12/2016
ANTONIO MIGUEL AITH NETO
Procurador Assessor - AJC
OAB/SP ne 88.619
PGM
De acordo.
São Paulo,15/12/2016
TIAGO ROSSI
Procurador Assessor Chefe -AJC
Respondendo pela Coordenadoria Geral do Consultivo
OAB/SP 195.190
PGM
1 Art. 1º Ficam considerados patrimônio ambiental os exemplares arbóreos classificados e descritos no documento 'Vegetação Significativa do Município de São Paulo', que faz parte integrante do presente Decreto, encontrando-se seu exemplar depositado e registrado na Seção de Documentação da Secretaria do Meio Ambiente. (...) Art. 8º São imunes de corte, em razão de sua localização e beleza, todas as árvores existentes nos seguintes logradouros públicos de Bairros-Jardins: (...) - Todas as ruas e praças da Chácara Flora. (...) Art. 19 Os proprietários dos imóveis onde estejam localizados os exemplares arbóreos mencionados neste Decreto ficam responsáveis por sua conservação, devendo tomar as medidas pertinentes, inclusive comunicando à Secretaria do Meio Ambiente sobre quaisquer ocorrências que possam comprometer a integridade dos referidos exemplares arbóreos.
2 "Artigo 3º - A SOCIEDADE MELHORAMENTOS CHÁCARA FLORA tem como objetivo: a) prestar serviços de manutenção e conservação das áreas comuns, instalações e administração, consistentes de: terrenos, bens imóveis, Ruas, Jardins, Praças e Logradouros que formam o Condomínio Chácara Flora; b) prestar serviços de vigilância e portaria na área denominada Chácara Flora; (...). Artigo 5º- A SOCIEDADE MELHORAMENTOS CHÁCARA FLORA, de caráter civil e fins não econômicos, é constituída de uma associação de proprietários de terrenos, com uma área total de aproximadamente 40 alqueires paulista, ou seja, 1.000.000 m2, constante de lotes, praças, lagos, áreas verdes, ruas, etc., constituindo-se em um loteamento, totalmente murado, possuindo como entrada e saída o portão 2, que se inicia na entrada e saída o portão 2, que se inicia na entrada e termina na Rua Lucinda de Carvalho, antiga Rua 2, onde se encontra a Rua Visconde de Porto Seguro e, portão 08, na confluência das ruas Alcatrazes e Utinga, para a Av. Washington Luiz." (fls. 744)
3 "Por estas razões a Chácara Flora não é tributada como um todo e, por esses mesmos motivos, além de impraticável devido ao nosso sistema de tributação (quadra fechada), a nosso ver, não poderão ser tributadas as áreas utilizadas como rua." (fls. 583/584)
4 A Procuradoria Geral do Município foi criada pela Lei 10.182, de 20 de outubro de 1986.
5 Apelação Nº 125.745. DESAPROPRIAÇÃO — LOTEAMENTO. Executado o arruamento, se a Municipalidade aceita, o plano, opera-se a transmissão do domínio particular para o domínio público. (..) Mas o melhor entendimento é o sustentado pela apelante. Não é a aprovação do loteamento que transforma os bens particulares em público, tese que tornaria insustentável, diante da caducidade da licença de arruamento (art. 772 do Código de Obras), mas sim, a aceitação do loteamento pela Prefeitura. Assim, a teoria que realmente satisfaz é a da concurso voluntário. Inicia-se o mesmo com o pedido de aprovação da planta. Executado o arruamento, se a Municipalidade aceita o plano, opera-se a transferência do domínio particular para o domínio público. Para sua caracterização, é necessário o ato da oferta do particular ao Poder Público (aprovação da planta) e a aceitação por parte da Municipalidade. Manifestada a vontade de ambas as partes, opera-se a transferência de domínio. E isto se verificou no caso dos autos. (...) Em resumo: dá-se provimento ao apelo da ré (Prefeitura Municipal de São Paulo), autorizando-a a levantar a indenização, (cópia anexa)
6 O caráter particular das vias de comunicação da Chácara Flora havia sido, nesses mesmos termos, e antes disso, exemplificado por Eduardo Vianna Motta em seu estudo doutrinário: "Em São Paulo, até o advento da lei n. 4.371, de 17 de abril de 1953, havia um regime legal de inscrição de ruas particulares, regulado pelo Ato n. 1.013, de 13 de fevereiro de 1936. Essas ruas particulares deviam ser muradas, e providas de portões, que se pudessem fechar a determinadas horas. Já tivemos a oportunidade de apreciar a questão em parecer, no qual sustentamos os direitos dos proprietários de imóveis sitos na "Chácara Flora" de conservar o caráter particular das vias de comunicações internas daquele loteamento. Também o Código de Obras Municipal em seus arts. 773 e 774, disciplina o regime das vias particulares. Via pública, no sentido de bem público, portanto, é somente aquela cujo solo pertence, numa relação de direito real, à pessoa de direito público, no direito paulistano, à vista dos expressos têrmos da sua legislação." (Bens de uso comum do povo - Natureza jurídica da relação entre êles e a pessoa de direito público - Modos de aquisição, in RT 335/67, setembro de 1963, destacamos)
7 É significativo, aliás, que tenha falhado a conjectura proferida época pelo Procurador de FISC, Ayrton Luis Marchiori, prosélito do concurso voluntário, segundo a qual os muros da Chácara cairiam, "premidos pelo crescimento da Metrópole", como caíram os muros de Jericó ao som de trombetas: "Do exposto, com a devida vénia, nos manifestamos contra os pareceres de PATR, ao considerar que áreas livres particulares, bem como ao sugerir, em consequência, sua tributação, devendo a Superior Administração verificar do momento conveniente para tomar as medidas judiciais necessárias à derrubada dos fechos do loteamento em apreço, se bem que cairão por si, premidos pelo crescimento da Metrópole, que não aceitará tal enquistamento dentro da urbe." (fls. 595, destacamos)
8"(...) Data vénia, não pode a Municipalidade omitir-se mais no caso. Deve usar de todos os meios legais para obter abertura das vias fechadas da Chácara Flora. Não pode admitir que grande área, pela qual nada recebe (ruas e logradouros internos), continue do uso exclusivo de um grupo, em detrimento do interesse coletivo. É fácil avaliar-se o sofrimento dos munícipes que residem nas adjacências do local, que são obrigados a circundar toda a gleba em exame para alcançarem ou saírem de suas casas. E todo o trânsito que se dirige à zona sul, ou dela demande a cidade, em virtude da área fechada só tem duas alternativas: Av. Santo Amaro ou rua Washington Luis (...)." (fls. 629)
9 Um dos propósitos do decreto-lei nº 58/37 (art. 39) foi justamente o de impedir prática até então possível de o loteador, proprietário das vias de comunicação e dos espaços livres, desvirtuar a destinação constante no plano de loteamento. Escreve Waldemar Loureiro que "nos loteamentos anteriores à vigência do Decreto-Lei nº 58, de 1937, frequentemente os proprietários estimulados pela procura dos terrenos, diminuíam os espaços reservados para logradouros públicos e ajardinamentos, quando os não suprimiam para acrescer alguns lotes mais a venda. A lei pôs termo ao abuso." (Waldemar Loureiro, Forense, Registro da Propriedade Imóvel, vol. II, pag. 41, nº 309). Ainda: "Esta disposição nova é salutar. Resultou das circunstâncias da vida prática. Não era fora do comum que, preparada uma planta de terrenos loteados, se fixasse a escolha dos pretendentes de lotes neste e naquele em razão da proximidade de praças, parques ou jardins. Não tardou que ela se convertesse numa decepção ou pela transformação das praças em novos lotes, ou pelo fechamento dos jardins internos e sua venda, no todo ou também em lotes a terceiros." (Waldemar M. Ferreira, Ed. RT, O Loteamento e Venda de Terrenos em Prestações, pág. 115)
10 "Do fato do loteamento, inicia-se o processo de formação do concurso voluntário. A vontade do particular, como vimos, pode decorrer de expressa manifestação, de formal declaração, ou decorrer de fatos, e então será de manifestação tácita. Para consumar-se o concurso voluntário, será de mister o acasalamento de duas vontades: a do particular e a da administração. A manifestação de vontade da administração dá-se através da afetação. Sem a afetação, a coisa, embora oferecida irrevogavelmente, ainda é particular. (...) O que é preciso, sim, para que se realize o contrato administrativo de concurso voluntário é a existência de inequívoca vontade de contratar pelas partes: inequívoca vontade de ofertar por parte do particular, e inequívoca vontade de aceitar, por parte da administração. Desde então, conjugadas as vontades, dar-se-á a transferência de domínio." (Eduardo Vianna Motta, op. cit., RT 338/43, destacamos)
11 Lei. 4.717/65. Art. 2º São nulos os atos lesivos ao patrimônio das entidades mencionadas no artigo anterior, nos casos de: a) incompetência; b) vício de forma; c) ilegalidade do objeto; d) inexistência dos motivos; e) desvio de finalidade. Parágrafo único. Para a conceituação dos casos de nulidade observar-se-ão as seguintes normas: a) a incompetência fica caracterizada quando o ato não se incluir nas atribuições legais do agente que o praticou; b) o vício de forma consiste na omissão ou na observância incompleta ou irregular de formalidades indispensáveis à existência ou seriedade do ato; c) a ilegalidade do objeto ocorre quando o resultado do ato importa em violação de lei, regulamento ou outro ato normativo; d) a inexistência dos motivos se verifica quando a matéria de fato ou de direito, em que se fundamenta o ato, é materialmente inexistente ou juridicamente inadequada ao resultado obtido; e) o desvio de finalidade se verifica quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência.
12 Essas metragens, por óbvios, não vinculam a Administração.
13 Transcrevo, a respeito, pertinente observação do Procurador Antonio Fogaça Simões, de março de 1969: "De qualquer forma, parece-me válido o argumento de que a dificuldade tributária na determinação do sujeito passivo da incidência fiscal é problema da Prefeitura, que deverá alcançar solução adequada pelos recursos ao seu alcance. Essa questão — a meu ver — carece de maiores indagações para resguardo dos interesse da Prefeitura, inclusive, porque, em sendo devidos os impostos, esse aspecto deverá ser abordado nas medidas administrativas (pertinentes)" (fls. 625)
14 "O primeiro elemento a caracterizar o uso comum consiste no franqueamento do uso diretamente a todos, independentemente da sua situação jurídica. O titular direto deste uso é o indivíduo (administrado) como membro participante de uma coletividade submetida ao poder estatal, o que não exige sequer domicílio ou nacionalidade. (...) Daí a melhor doutrina consignar que o uso comum 'é aberto a todos ou a uma coletividade de pessoas para ser exercido anonimamente, em igualdade de condições, sem necessidade de consentimento expresso de toda a Administração' ou que é fruível 'indistintamente por quaisquer sujeitos, em concorrência igualitária e harmoniosa com os demais, de acordo com o destino do bem'." (Floriano de Azevedo Marques Neto, Bens Públicos, Editora Fórum, 2009, p. 203)
1987-0.002.528-3
INTERESSADO: SOCIEDADE MELHORAMENTOS CHÁCARA FLORA
ASSUNTO: Chácara Flora. Natureza jurídica da vias, praças e logradouros decorrentes do fracionamento da gleba na década de 1920, aprovado pela antigo Município de Santo Amaro
Continuação da informação nº 1552/2016-PGM.AJC
SF
Sr. Secretário,
Encaminho o presente com a manifestação da Coordenadoria Geral do Consultivo desta Procuradoria Geral do Município, que acolho, reafirmando conclusivamente o caráter particular dos logradouros da Chácara Flora, loteamento realizado anteriormente ao Decreto-lei nº 58/1937 — dada a inocorrência, na hipótese, de concurso voluntário ou de afetação de tais vias ao uso público —, a fim de que, relativamente aos exercícios não atingidos pela decadência, sejam promovidos por essa Pasta o correspondente lançamento dos tributos incidentes sobre tais áreas.
Acompanham os processos administrativos nº 2000-0.014.254-5 e 1979-0.026.513-9 (encerrado); TID nº 15.535.512; caixa contendo matrícula dos lotes.
São Paulo, 15/12/2016
ROBINSON SAKIYAMA BARREIRINHAS
PROCURADOR GERAL DO MUNICÍPIO
OAB/SP 173.527
PGM.G
Este texto não substitui o original publicado no Diário Oficial da Cidade de São Paulo