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RAZÕES DO VETO AO PROJETO DE LEI Nº 48/2003; OFÍCIO DE 9 de Janeiro de 2004

Razões de Veto ao Projeto de Lei nº 48/03

Ofício A.T.L. Nº 035/04

Senhor Presidente

No termos do Ofício nº 18/LEG.3/0750/2003, Vossa Excelência encaminhou à sanção cópia autêntica da lei decretada por essa Egrégia Câmara, relativa ao Projeto de Lei nº 48/03, proposto pelos Vereadores Antonio Goulart, Alcides Amazonas, Antonio Carlos Rodrigues, Celso Jatene, Gilberto Natalini, Odilon Guedes e Antonio Salim Curiati Júnior, o qual dispõe sobre o fechamento de conjuntos residenciais situados no âmbito do Município de São Paulo.

Conquanto meritórios os propósitos de que se imbuíram seus ilustres autores, que objetivam garantir segurança aos moradores dos mencionados conjuntos, impõe-se o veto total à medida aprovada, haja vista sua inconstitucionalidade, ilegalidade e contrariedade ao interesse público, na conformidade das razões aduzidas.

Inicialmente, verifica-se que a proposta, em seu artigo 1º, estabelece como requisitos para o fechamento, dentre outros, “a comprovação de que as vias de circulação que tornar-se-ão internas ao conjunto residencial não sejam necessárias ao sistema de circulação da região e não tenham sido doadas ao município” (inciso I), bem como que “as áreas verdes doadas ao município deverão manter seu caráter de uso público” (inciso VI).

Nesse tópico, cabe considerar que, o teor do artigo 22 da Lei Federal nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979, desde a data de registro do loteamento, passam a integrar o domínio do Município as vias e praças, os espaços livres e as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto e do memorial descritivo.

Portanto, se o conjunto residencial estiver regular, na forma da lei municipal, as áreas citadas no mencionado dispositivo, caracterizar-se-ão como públicas, prescindindo, para tanto, de qualquer doação.

Como se vê, as vias do conjunto integram sempre o domínio do Município, quer sejam ou não necessárias ao sistema viário e de circulação da região.

Examinando-se, ainda, mais atentamente o texto aprovado, nota-se que fica a critério dos proprietários a forma de efetivação do fechamento, que, assim, poderá ser mediante a utilização de cercas, muros, portões, cancelas, ou qualquer outro tipo de obstáculo.

E mais: restringe a livre circulação, na área delimitada, aos próprios moradores e aos medidores dos serviços de água, luz e gás, cerceando os demais cidadãos em seu direito de ingresso e trânsito no espaço público.

Tal proibição é vedada pelo sistema jurídico brasileiro.

O Código Civil Brasileiro define os bens públicos como aqueles “do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno;” (artigo 98, 1ª parte).

E o mesmo diploma civil, classifica como públicos os bens de uso comum do povo, os de uso especial e os dominicais. As ruas e praças incluem-se nos primeiros (artigo 99, inciso I).

O ilustre Hely Lopes Meirelles, em sua obra Direito Administrativo Brasileiro, 27ª edição, pp. 490/491, bem define o que são os bens de uso comum do povo e a impossibilidade da restrição prevista no texto vindo à sanção:

“Uso comum do povo – Uso comum do povo é todo aquele que se reconhece à coletividade em geral sobre os bens públicos, sem discriminação de usuários ou ordem especial para sua fruição. É o uso que o povo faz das ruas e logradouros públicos, dos rios navegáveis, do mar e das praias naturais. Esse uso comum não exige qualquer qualificação ou consentimento especial, nem admite freqüência limitada ou remunerada, pois isto importaria atentado ao direito subjetivo público do indivíduo de fruir os bens de uso comum do povo sem qualquer limitação individual. Para esse uso só se admitem regulamentações gerais de ordem pública, preservadoras da segurança, da higiene, da saúde, da moral e dos bons costumes, sem particularizações de pessoas ou categorias sociais. Qualquer restrição ao direito subjetivo de livre fruição, como a cobrança de pedágio nas rodovias, acarreta a especialização do uso e, quando se tratar de bem realmente necessário à coletividade, só pode ser feita em caráter excepcional.

(.....................................................................................)

No uso comum do povo os usuários são anônimos, indeterminados, e os bens utilizados o são por todos os membros da coletividade – uti universi -, razão pela qual ninguém tem direito ao uso exclusivo ou a privilégios na utilização do bem: o direito de cada indivíduo limita-se à igualdade com os demais na fruição do bem ou no suportar os ônus dele resultantes”.

Como se depreende do exposto, as áreas públicas são infensas, por sua natureza, ao uso privativo. Logo, não podem ficar dentro de limites inacessíveis a todo e qualquer cidadão.

Portanto, normas que criem restrições ao amplo acesso do povo devem ter cunha de excepcionalidade.

A restrição ao público somente se justificaria no caso de condomínios fechados, nos quais as vias pertencem, em frações ideais, aos proprietários das unidades do conjunto residencial. A proposta em análise implica em privatizar todas as vias de acesso, criando verdadeiros condomínios.

Além disso, o outro requisito — de que as áreas verdes doadas ao Município deverão manter seu caráter de uso público — mostra-se incompatível com o próprio sentido da mensagem. Ora, se tais espaços estiverem enclausurados no interior do conjunto, não poderão, logicamente, ser utilizados por mais ninguém, além dos moradores e medidores dos serviços públicos.

Ademais, a medida condiciona o fechamento à anuência de 70% (setenta por cento) dos proprietários das unidades residenciais, restando, todavia, os moradores da área externa ao conjunto — que sofrerão as suas conseqüências — sem direito a manifestação.

Isso ocasionaria, com certeza, decisões judiciais determinando a retirada dos bloqueios, como já ocorreu no passado, quando bolsões residenciais foram implantados nos termos da Lei nº 11.322, de 22 de dezembro de 1992. Tal situação culminou com a sua alteração por meio da Lei nº 13.302, de 17 de janeiro de 2002, regulamentada pelo Decreto nº 43.692, de 1º de setembro de 2003.

Com efeito, em consideração à insatisfação de transeuntes, outrora manifestada por intermédio das mencionadas ações, a lei ora em vigor veda a instalação de qualquer dispositivo físico que impeça o livre ingresso de munícipes ao território delimitado, prevendo a necessidade de concordância expressa de 70% de proprietários tanto da área interna do bolsão, quanto da área externa, impactada.

A propósito, é de se apontar que a Lei Municipal nº 10.898, de 5 de dezembro de 1990, com alterações posteriores, autoriza o fechamento das vilas e ruas sem saída residenciais ao tráfego de veículos estranhos aos seus moradores, permanecendo irrestrita a ampla circulação da população.

Não bastasse a suficiência das razões apontadas, cumpre acrescentar que a medida é inconstitucional por se chocar com o salutar princípio da harmonia e independência entre os Poderes, insculpido no artigo 2º da Constituição da República e reproduzido nos artigos 5º da Constituição Estadual e 6º da Lei Orgânica do Município de São Paulo.

De fato, compete privativamente ao Chefe do Executivo Municipal a administração dos bens municipais, na forma do disposto no artigo 70, inciso VI, reforçado pelo artigo 111, ambos da Lei Orgânica do Município de São Paulo.

Por derradeiro, nota-se, pela Justificativa que acompanhou o projeto de lei, que a medida originou-se de caso particular com características peculiares e objeto de demanda com a Prefeitura, o qual, por evidente, não se pode adotar como paradigma para uma solução legal, extensiva a toda a sorte de casos existentes no território paulistano.

Nessas condições, em face da apontada inconstitucionalidade, ilegalidade e contrariedade ao interesse público, vejo-me na contingência de vetar integralmente a medida aprovada, com fulcro no artigo 42, § 1º, da Lei Orgânica do Município de São Paulo, devolvendo o assunto ao reexame dessa Egrégia Casa de Leis.

Na oportunidade, renovo a Vossa Excelência protestos de elevado apreço e distinta consideração.

MARTA SUPLICY

Prefeita

Ao Excelentíssimo Senhor

ARSELINO TATTO

Presidente da Câmara Municipal de São Paulo

 

Este texto não substitui o original publicado no Diário Oficial da Cidade de São Paulo