Processo n° 6013.2018/0000995-7
INTERESSADO: Valéria Cristina Campos Coelho
ASSUNTO: Flexibilização da jornada de trabalho em razão da rotina de servidora responsável por filho portador de necessidades especiais.
Informação n° 1410/2018- PGM/AJC
PROCURADORIA GERAL DO MUNICÍPIO
COORDENADORIA GERAL DO CONSULTIVO
Senhor Procurador Chefe
Trata-se de consulta formulada pela Secretaria Municipal de Gestão acerca da possibilidade de redução da jornada de trabalho de servidora responsável por filho portador de Síndrome de Down.
A Coordenadoria de Gestão de Pessoas de SMG apontou que a matéria não está disciplinada no Município, uma vez que a Lei n° 14.640/07, que permitia a flexibilização da jornada em situações como a do presente, foi declarada inconstitucional. Apontou, ainda, que a situação não se enquadra no artigo 9° do Decreto 24.146/87, alterado pelo Decreto n° 44.091/03, nem no artigo 2°, §2° do Decreto n° 33.930/94 (DOC SEI n° 8373900).
A Coordenadoria Jurídica de SMG manifestou-se pela possibilidade de deferimento do pedido, com fundamento nas disposições da Convenção Internacional sobre Direitos da Pessoa com Deficiência, que tem status constitucional. Apontou decisão do TJ/SP neste sentido (DOC SEI n° 8670398 )
Pois bem.
Como se depreende do presente, a servidora pretende a redução da sua jornada diária de trabalho em uma hora e meia, sem compensação ou redução da remuneração. Contudo, como já esclarecido, não há amparo legal para sua pretensão.
A COJUR/SMG esclareceu que o pedido encontra amparo na Convenção Internacional de Direitos da Pessoa com Deficiência, mas discordamos de tal posicionamento.
A Convenção Internacional de Direitos da Pessoa com Deficiência foi incorporada ao ordenamento constitucional brasileiro na forma do artigo 5°, §3° da CF, circunstância esta que lhe garante equivalência de emenda constitucional. Contudo, muito embora detenham natureza de norma constitucional de direito fundamental, tal fato não é suficiente para afastar a necessidade de lei regulamentando o direito do servidor à redução da jornada de trabalho no âmbito municipal em beneficio do portador de deficiência.
Isto porque, como se sabe, a Administração está adstrita ao princípio da legalidade, previsto no artigo 37, "caput" da Constituição Federal.
Para tanto, há necessidade de adequação da legislação municipal como, aliás, ocorreu no âmbito federal com a edição da Lei n° 13.370/2016, que alterou o Estatuto dos Servidores Públicos da União (Lei n° 8.112/90), que se aplica exclusivamente aos servidores públicos federais. Em relação aos direitos e deveres dos servidores municipais, há regramento específico (Lei n° 8989/79 e leis esparsas), que não contempla idêntico beneficio. É o que ensina Hely Lopes Meirelles1 :
"A competência do Município para organizar o serviço público e seu pessoal é consectário da autonomia administrativa de que dispõe (CF, art.30,I). Atendidas as normas constitucionais aplicáveis ao servidor público (CF, arts.37-41), bem como os preceitos das leis de caráter complementar ou nacional e de sua lei orgânica, pode o Município elaborar o regime jurídico de seus servidores, segundo as conveniências locais. Nesse campo é inadmissível a extensão das normas estatutárias federais ou estaduais aos servidores municipais. Só será possível a aplicação do estatuto da União ou do Estado-membro se a lei municipal assim o determinar expressamente.
Conforme consta da referida Convenção, tem por objetivo "promover, proteger e assegurar o exercício pleno e eqüitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência" (artigo 1°). Extrai-se, ainda, do artigo 4°:
"1.Os Estados Partes se comprometem a assegurar e promover o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência, sem qualquer tipo de discriminação por causa de sua deficiência. Para tanto, os Estados Partes se comprometem a:
a) Adotar todas as medidas legislativas, administrativas e de qualquer outra natureza, necessárias para a realização dos direitos reconhecidos na presente Convenção;
b) Adotar todas as medidas necessárias, inclusive legislativas, para modificar ou revogar leis, regulamentos, costumes e práticas vigentes, que constituírem discriminação contra pessoas com deficiência;
c) Levar em conta, em todos os programas e políticas, a proteção e a promoção dos direitos humanos das pessoas com deficiência;
d) Abster-se de participar em qualquer ato ou prática incompatível com a presente Convenção e assegurar que as autoridades públicas e instituições atuem em conformidade com a presente Convenção;
e) Tomar todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação baseada em deficiência, por parte de qualquer pessoa, organização ou empresa privada;
f) Realizar ou promover a pesquisa e o desenvolvimento de produtos, serviços, equipamentos e instalações com desenho universal, conforme definidos no Artigo 2 da presente Convenção, que exijam o mínimo possível de adaptação e cujo custo seja o mínimo possível, destinados a atender às necessidades específicas de pessoas com deficiência, a promover sua disponibilidade e seu uso e a promover o desenho universal quando da elaboração de normas e diretrizes;
g) Realizar ou promover a pesquisa e o desenvolvimento, bem como a disponibilidade e o emprego de novas tecnologias, inclusive as tecnologias da informação e comunicação, ajudas técnicas para locomoção, dispositivos e tecnologias assistivas, adequados a pessoas com deficiência, dando prioridade a tecnologias de custo acessível;
h) Propiciar informação acessível para as pessoas com deficiência a respeito de ajudas técnicas para locomoção, dispositivos e tecnologias assistivas, incluindo novas tecnologias bem como outras formas de assistência, serviços de apoio e instalações;
i) Promover a capacitação em relação aos direitos reconhecidos pela presente Convenção dos profissionais e equipes que trabalham com pessoas com deficiência, de forma a melhorar a prestação de assistência e serviços garantidos por esses direitos."
Como se vê, os preceitos possuem conteúdo amplo, circunstância esta que não autoriza que o benefício possa ser concedido na forma pleiteada pela interessada sem respaldo em lei específica.
Não se está negando o direito fundamental de proteção a pessoa com deficiência, mas há que se considerar que a Administração Pública não pode se afastar do princípio da legalidade também constitucionalmente previsto. A Administração só pode atuar nos limites da lei. Neste sentido, a fim de se harmonizar ambos os preceitos, concordamos com o DERH/SG acerca da necessidade de se promover estudos para a viabilidade administrativa de concessão tal benefício.
A COJUR/SMG destacou acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo sustentando a aplicação da referida Convenção Internacional para fins de deferir o benefício ao servidor municipal. Muito embora existam outras decisões do TJ/SP no mesmo sentido2, o entendimento do Tribunal não é unânime a respeito do assunto. As decisões em sentido contrário impedem a concessão do benefício justamente em razão da ausência de amparo legal. Confi'ra-se:
"AGRAVO DE INSTRUMENTO - Servidora Municipal de Suzano - Ação objetivando a redução de 50% da jornada de trabalho, sem prejuízo dos vencimentos, para acompanhar o tratamento de filha menor impúbere portadora de Síndrome de Down e Cardiopatia Congênita - Tutela provisória de urgência deferida - Legislação Municipal que não prevê tal hipótese - Ausentes, em sede de cognição sumária, os requisitos previstos no "caput" do art. 300 do CPC de 2015 - Possibilidade de irreversibilidade da medida caso o pedido seja julgado improcedente a final (§ 3° do art. 300 do CPC de 2015) - Decisão reformada - Recurso provido."
(Agravo de Instrumento 2146352-97.2017.8.26.0000; Relator (a): Maria Laura Tavares; Órgão Julgador: 5ª Câmara de Direito Público; Foro de Suzano - 1ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 19/10/2017; Data de Registro: 24/10/2017)
"APELAÇÃO - AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER - CONCESSÃO DE JORNADA ESPECIAL DE TRABALHO - SERVIDORA COM FILHA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA. O servidor está submetido à jornada de trabalho e possui direitos às licenças, inclusive para tratamento da saúde de pessoa da família, segundo a forma prevista para a verificação administrativa e sujeita aos corolários legais, inclusive remuneratórios. Dever da Administração de agir segundo o mandamento da lei. Redução jornada pela metade e "ad aeternum" mostra-se excessiva, com ferimento aos princípios da proporcionalidade, razoabilidade e legalidade. A envergadura da proteção constitucional aos direitos sociais e às pessoas em situação de vulnerabilidade não legitima a vergadura do sistema jurídico para a criação de privilégio individual. Situação individual diversa daquela do servidor com deficiência, mas de servidor hígido e que busca o benefício para sua organização pessoal e familiar em atenção à filha enquadrada como Pessoa com Deficiência (PcD). Impossibilidade de manejo de medida com fim análogo ao mandado de injunção, diante da ausência de direito subjetivo previsto em lei estadual, e, portanto, sem omissão legislativa a suprir falta de regulamentação. Não existindo o benefício no regime jurídico estadual, vedado é ao Judiciário a sua criação sem respeito aos princípios da legalidade e da separação de Poderes. Judiciário não tem função legislativa supletiva nem pode substituir-se ao administrador. Aplicação analógica da Súmula Vinculante 37 do STF. Necessidade de adequação do juiz à sua função jurisdicional, sem usurpação de funções legislativa e administrativa. Sentença que julgou improcedente a ação mantida. Recurso não provido. "
(TJSP; Apelação 1008568-67.2016.8.26.0344; Relator (a): Leonel Costa; Órgão Julgador: 8ª Câmara de Direito Público; Foro de Marília - Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 19/09/2018; Data de Registro: 25/09/2018)
"AGRAVO DE INSTRUMENTO - Ação de Procedimento Comum - Pretensão de reformar a decisão que determinou a redução da jornada de trabalho da Autora - Inexistência dos requisitos legais para a concessão da tutela (art. 300, CPC) - Direito não previsto na legislação estadual - Perigo de irreversibilidade da medida - Decisão reformada - Recurso provido."
(TJSP; Agravo de Instrumento 3000972-89.2018.8.26.0000; Relator (a): Ana Liarte; Órgão Julgador: 4ª Câmara de Direito Público; Foro de São José dos Campos - 1ª Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 25/06/2018; Data de Registro: 26/06/2018)
"AGRAVO DE INSTRUMENTO - Servidora Pública Municipal - Decisão que indeferiu tutela de urgência para a concessão de redução de 50% da jornada de trabalho, sem prejuízo dos vencimentos, para acompanhar o tratamento portadora de deficiência - Decisão mantida - Legislação Municipal que não prevê tal hipótese - Ausência dos requisitos do art. 300 do Código de Processo Civil - Decisão mantida - Recurso desprovido."
(TJSP; Agravo de Instrumento 2223683-58.2017.8.26.0000; Relator (a): Moreira de Carvalho; Órgão Julgador: 9ª Câmara de Direito Público; Foro de Campinas - 1ª Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 05/12/2017; Data de Registro: 05/12/2017)
"SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL. MANDADO DE SEGURANÇA. REDUÇÃO DE CARGA HORÁRIA. Impetrante que cuida de filha com paralisia irreversível. Pretensão de redução de carga horária sem compensação e sem redução de vencimentos. Ausência de previsão legal no âmbito do serviço público estadual. Impossibilidade de aplicação, por analogia, da Lei Federal n° 8.112/90. Aumento de vencimentos sem a devida contraprestação, vedada pela Súmula Vinculante n° 37 do c. STF. RECURSOS PROVIDOS.
(TJSP; Apelação / Remessa Necessária 1009857-10.2018.8.26.0071; Relator (a): Alves Braga Junior; Órgão Julgador: 2ª Câmara de Direito Público; Foro de Bauru - 1ª Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 23/10/2018; Data de Registro: 23/10/2018)
"Servidora pública municipal - Mandado de Segurança - Município de Lourdes - Impetrante com filho portador de epilepsia refratária e deficiência intelectual leve - Pretensão de redução da carga horária sem compensação e redução dos vencimentos, através de interpretação analógica do art. 98 da Lei Federal n° 8.112/90, aplicável a servidores da União e autarquias federais - Impossibilidade -Discricionariedade legislativa quanto às formas de efetivação das proteções constitucionais a crianças e deficientes - Não verificada omissão legislativa que justificasse a aplicação analógica de lei de ente federado diverso - Pretensão de aumento de vencimentos por hora trabalhada, ausente contraprestação ao ente público, representando enriquecimento sem causa e quebra de isonomia em relação aos demais servidores municipais - Vedação da Súmula Vinculante n° 37 do C. STF ao aumento de vencimentos por isonomia em relação aos servidores federais - Municipalidade que, entretanto, deferiu administrativamente jornada especial de trabalho, com exigência de compensação, anteriormente à vigência da Lei Federal n° 13.370/2016 - Revogação que se limita à redução da carga horária sem compensação, não havendo negativa para concessão mediante devida contraprestação - Documentos que atestam que o horário reduzido foi mantido desde o deferimento administrativo inicial e é compatível com o horário escolar do filho da servidora - Ausência de contrariedade da impetrante - Impossibilidade de impor ao Município a obrigação de concessão de horário especial sem compensação - Sentença de concessão da segurança reformada. Recursos oficial e voluntário do Município providos.
(TJSP; Apelação / Remessa Necessária 1000930-11.2017.8.26.0097; Relator (a): Luciana Bresciani; Órgão Julgador: 2ª Câmara de Direito Público; Foro de Buritama - 2ª Vara; Data do Julgamento: 24/07/2018; Data de Registro: 24/07/2018)
Por todo exposto, pode-se concluir que o pedido inicial não pode ser atendido por falta de amparo legal.
A apreciação e deliberação de Vossa Senhoria..
São Paulo, 18/12/2018
Paula Barreto Sarli
Procuradora Assessora - AJC
OAB/SP 200.265
PGM
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De acordo.
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São Paulo, 21/12/2018
TICIANA NASCIMENTO DE SOUZA SALGADO
Procuradora Assessora Chefe-AJC
OAB/SP 175.186
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1 Direito Municipal Brasileiro - 13ª Ed. - São Paulo: Malheiros, 2003- p.574/575
2 TJSP; Apelação 1025499-77.2018.8.26.0053, TJSP; Apelação / Remessa Necessária 100372358.2016.8.26.0322; TJSP; Apelação / Remessa Necessária 1013408-86.2017.8.26.0053; TJSP; Apelação 1039674-49.2016.8.26.0602
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Processo n° 6013.2018/0000995-7
INTERESSADO: Valéria Cristina Campos Coelho
ASSUNTO: Flexibilização da jornada de trabalho em razão da rotina de servidora responsável por filho portador de necessidades especiais.
Cont. da Informação n° 1410/2018- PGM/AJC
PROCURADORIA GERAL DO MUNICÍPIO
Senhor Procurador Geral
Encaminho o presente, com a manifestação da Assessoria Jurídico-Consultiva desta Coordenadoria, que acompanho. Convém reiterar, por oportuno, a recomendação para que sejam promovidos, pela(s) Pasta(s) competente(s), os estudos necessários para subsidiar eventual e oportuna proposta legislativa sobre a matéria.
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São Paulo, 04/01/2019
TIAGO ROSSI
Coordenador Geral do Consultivo
OAB/SP n° 195.910
PGM
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Processo n° 6013.2018/0000995-7
INTERESSADO: Valéria Cristina Campos Coelho
ASSUNTO: Flexibilização da jornada de trabalho em razão da rotina de servidora responsável por filho portador de necessidades especiais.
Cont. da Informação n° 1410/2018- PGM/AJC
Secretária Municipal de Gestão
Senhor Secretário
Encaminho o presente, com a manifestação da Coordenadoria Geral do Consultivo desta Procuradoria, que acolho.
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São Paulo, 16/01/2019
GUILHERME BUENO DE CAMARGO
PROCURADOR GERAL DO MUNICÍPIO
OAB/SP 188.975
PGM
Este texto não substitui o original publicado no Diário Oficial da Cidade de São Paulo