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RAZÕES DO VETO AO PROJETO DE LEI Nº 284/2007; OFÍCIO DE 28 de Dezembro de 2007

Razões de Veto ao Projeto de Lei nº 284/07

Ofício ATL nº 250/07

Ref.: Ofício SGP-23 nº 5967/2007

Senhor Presidente

Reporto-me ao ofício referenciado, por meio do qual Vossa Excelência encaminhou à sanção cópia autêntica da lei decretada por essa Egrégia Câmara, na sessão de 28 de novembro de 2007, relativa ao Projeto de Lei nº 284/07, de autoria do Vereador José Rolim, que dispõe sobre o uso de pisos drenantes e estruturas de infiltração de águas de chuvas para o subsolo em estabelecimentos comerciais, industriais e grandes conjuntos residenciais.

O texto aprovado alcança, inclusive com efeito retroativo, os sobreditos estabelecimentos e conjuntos residenciais, com área igual ou superior a 1.000m2, os quais deverão ser dotados de pisos drenantes, em sua área descoberta, ou estruturas subsuperficiais permeáveis. Tais pisos ou estruturas deverão, mediante fórmulas técnicas que a propositura apresenta, garantir a retenção no lote de parte do volume de chuva eventualmente precipitado, calculado de acordo com um coeficiente de proporcionalidade. As estruturas, por sua vez, deverão constar dos novos projetos ou ser construídas nas edificações existentes no prazo de 3 anos.

A matéria, na verdade, é complexa sob o ponto de vista técnico e a instituição de uma obrigação dessa natureza, que constitui restrição urbanística de grande amplitude, a interferir no direito de propriedade e no direito de construir, atingindo, também, as edificações erigidas, requer maiores discussões e uma análise mais profunda.

De início, verifica-se que a propositura tem a louvável justificativa de contribuir para a redução dos riscos de inundação e danos causados pelas enchentes no Município de São Paulo. No entanto, indubitavelmente, o projeto aprovado trata de matéria de uso e ocupação do solo, bem como de legislação edilícia, as quais devem ser submetidas a processo legislativo diferenciado, com regramento específico, uma vez que afetam diretamente o direito de propriedade, garantido nos termos do artigo 5º da Constituição Federal.

Para a boa intelecção da matéria, é necessário um breve sumário das normas jurídicas que a regem. A Constituição Federal, em seu artigo 182, ao tratar da política de desenvolvimento urbano, introduziu a exigência do plano diretor, remetendo à lei a fixação das diretrizes gerais, com o objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade. Nesse sentido, foi editada a Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho de 2001 – Estatuto da Cidade, a qual estabelece, em seu artigo 4º, como instrumento de planejamento municipal, dentre outros, o plano diretor e a disciplina do parcelamento, do uso e da ocupação do solo.

No âmbito municipal, tais instrumentos foram instituídos nos termos da Lei nº 14.430, de 13 de setembro de 2002 (Plano Diretor Estratégico – PDE), e da Lei nº 13.885, de 25 de agosto de 2004 (Planos Regionais Estratégicos das Subprefeituras e Lei de Uso e Ocupação do Solo – PRE/LUOS).

Dentre os inúmeros aspectos urbanísticos que figuram em tais diplomas legais, põe-se em foco a questão da permeabilidade do solo, objeto do projeto de lei aprovado. É que o crescimento da Cidade como um todo tem implicado a contínua impermeabilização do solo, pelas edificações que criam obstáculos à infiltração das águas de chuva, acarretando diversos impactos ambientais.

A problemática foi tratada no Plano Diretor mediante o estabelecimento de uma taxa de permeabilidade, a qual, segundo esclarece o engenheiro Cláudio Bernardes, consiste na “relação entre a área permeável, que permite a infiltração da água no solo, livre de qualquer edificação ou pavimentação não drenante, e a área do lote” (in “Plano Diretor Estratégico, Lei de Zoneamento e a Atividade Imobiliária em São Paulo”, Nome da Rosa Editora Ltda., 2005, pág. 29).

Os mencionados Planos Regionais Estratégicos das Subprefeituras estabeleceram, no Quadro 4 que integra cada um dos livros anexos ao referido diploma legal, as “Características de Aproveitamento, Dimensionamento e Ocupação dos Lotes”. Tais características se constituem na integralidade das exigências necessárias ao proprietário em termos de ocupação do lote, nas quais se incluem a taxa de permeabilidade, sendo que o uso e as regras edilícias são objeto de outras normas específicas.

De modo diverso, a medida ora aprovada introduz um novo mecanismo para a drenagem urbana, mediante a criação de estruturas para a infiltração das águas das chuvas no subsolo de edificações construídas, impondo também aos novos projetos características não previstas no plano diretor. A inserção de uma nova disciplina sobre a matéria deveria, na medida em que interfere e difere da sistemática de permeabilidade prevista nos Planos Regionais Estratégicos das Subprefeituras, ser efetivada mediante proposta de alteração desse diploma legal ou seguir o trâmite de legislação que trate desse assunto.

Na verdade, cuida-se de situação típica de plano regional, pois a permeabilidade varia em cada região da cidade, seja sob o aspecto geográfico, de tipo de solo, seja sob o aspecto ocupacional, em função do tipo de edificações locais.

Ressalta-se que a legislação de zoneamento estabelece a taxa de permeabilidade por lote, independentemente de sua dimensão – de modo oposto ao contemplado na propositura, que incide sobre lotes a partir de 1000m2 –, o que resulta na contribuição geral de toda a coletividade para a drenagem urbana.

Patente, pois, frente às considerações já tecidas, que a iniciativa contraria a legislação existente, esta, diga-se, de hierarquia superior, a impor inexoravelmente seu veto.

Mesmo que assim não fosse, o projeto aprovado traz em seu bojo disposições que, da forma como se encontram redigidas, não poderiam ser acolhidas, como se demonstrará a seguir.

Inicialmente, é de se observar que a obrigação contida no “caput” do artigo 1º se destina apenas aos estabelecimentos comerciais, industriais e conjuntos residenciais. Dessa maneira, parcela significativa de estabelecimentos, ou seja, aqueles voltados à prestação de serviços, todas as edificações de uso institucional, assim como as residências unifamiliares em lotes superiores a 1000m2, estariam fora do alcance da norma.

Tome-se como exemplo os grandes hospitais, laboratórios, clínicas, hotéis e bancos, que não estariam sujeitos à nova medida. Ao revés, no que se refere aos conjuntos residenciais, seriam diretamente atingidas as Habitações de Interesse Social – HIS e os conjuntos habitacionais destinados à população de baixa renda.

Ao estabelecer tais distinções, a medida fere o princípio da igualdade, constante do artigo 5º da Constituição Federal, elegendo algumas situações em detrimento de outras sem que se tenha justificativa para o discrímen.

Sobre a questão, preleciona o insigne jurista Celso Antonio Bandeira de Mello, in O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, Editora Revista dos Tribunais - 1978, ao tratar especificamente da correlação lógica entre fator de discrímen e a desequiparação procedida:

“O ponto nodular para exame da correção de uma regra em face do princípio isonômico reside na existência ou não de correlação lógica entre o fator erigido em critério de discrímen e a discriminação legal decidida em função dele.” (pág. 47)

“Em outras palavras: a discriminação não pode ser gratuita ou fortuita. Impende que exista uma adequação racional entre o tratamento diferençado construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo. Segue-se que se o fator diferencial não guardar conexão lógica com a disparidade de tratamentos jurídicos dispensados a distinção estabelecida afronta o princípio da isonomia.” (pág. 49)

“Em síntese: a lei não pode conceder tratamento específico, vantajoso ou desvantajoso, em atenção a traços e circunstâncias peculiarizadoras de uma categoria de indivíduos se não houver adequação racional entre o elemento diferencial e o regime dispensado aos que se inserem na categoria diferençada.” (pág. 50)

Já no que tange às disposições constantes dos parágrafos do artigo 1º, e também do artigo 2º, tem-se que as soluções de engenharia alvitradas, com extremo detalhamento, bem como as fórmulas técnicas previstas para se alcançar o objetivo colimado, mostram-se de difícil aplicação, quer para os administrados, quer para os profissionais da Prefeitura incumbidos da aprovação dos projetos de edificação e da fiscalização da lei. Nesse aspecto, observe-se que pretende a medida impor coeficientes até mais restritivos do que os estabelecidos nos Planos Regionais Estratégicos das Subprefeituras, em evidente desrespeito à antes citada hierarquia de tais normas no plano urbanístico.

De outra parte, a obrigatoriedade prevista no artigo 5º, no sentido de que as áreas que não preencham os requisitos expressos no artigo 1º, existentes em período anterior à promulgação da lei, deverão a ela adequar-se no prazo de 3 anos, configura verdadeira hipótese de retroatividade da lei, eis que atingiria atos jurídicos perfeitos e direitos adquiridos, ou seja, os direitos subjetivos oriundos de projetos aprovados e concluídos segundo as leis vigentes quando de sua aprovação, em flagrante violação ao artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal.

Ademais, em inúmeros casos, ocorreria a impossibilidade de adequação às novas regras das construções existentes – como se verifica, por exemplo, nos imóveis tombados –, hipótese não regulada pelo projeto aprovado.

Ao atingir as edificações concluídas, a propositura, se sancionada, acarretaria a necessidade de fiscalização individualizada de centenas de milhares de imóveis, a evidenciar a inviabilidade da ingente tarefa cometida ao Executivo, não decorrendo daí um resultado eficaz para a finalidade a que se propõe.

Analisado em seu conjunto, o texto aprovado revela-se de difícil compreensão e implementação. Com efeito, a nova disciplina exigiria cálculos casuísticos, imóvel por imóvel, gerando entraves ao enquadramento de cada situação e à aplicação e fiscalização do atendimento à lei.

Todos os aspectos desde o início abordados, por configurarem excesso de obrigações impostas aos administrados, contrastam o princípio da razoabilidade, previsto expressamente no artigo 111 da Constituição do Estado de São Paulo e no artigo 81 da Lei Orgânica Municipal, que deve pautar as ações da Administração Pública.

Concluindo, ante as razões expostas, vê-se que o projeto padece de inconstitucionalidade por infringência aos preceitos constitucionais referidos, bem como de ilegalidade, em face da inobservância à superior hierarquia das mencionadas normas urbanísticas municipais, e, ainda, de contrariedade ao interesse público, pelo impacto urbanístico que produziria na Cidade à míngua dos estudos técnicos que devidamente o avaliassem.

Por conseguinte, em que pese considerar meritória a iniciativa do nobre Vereador, vejo-me na contingência de vetar integralmente o projeto aprovado, com fulcro no artigo 42, § 1º, da Lei Orgânica do Município de São Paulo, devolvendo o assunto ao reexame dessa Egrégia Câmara.

Na oportunidade, renovo a Vossa Excelência meus protestos de apreço e consideração.

GILBERTO KASSAB

Prefeito

Ao

Excelentíssimo Senhor

ANTONIO CARLOS RODRIGUES

Digníssimo Presidente da Câmara Municipal de São Paulo

 

 

Este texto não substitui o original publicado no Diário Oficial da Cidade de São Paulo