processo SEI n° 6012.2022/0010067-0
INTERESSADO: SECRETARIA MUNICIPAL DE DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA -SMDHC
ASSUNTO: Revogação tácita da Lei Municipal n° 17.819/2022 com a edição da Lei Municipal n° 18.210/2024, que dispõe sobre a mesma matéria. Possibilidade de aplicação dos preceitos regulamentares antigos (Decreto n° 61.564/2022, Decreto n° 62.149/2023 e Portaria SMDHC n° 56/2023), naquilo que não for incompatível com a Lei n° 18.210/2024, até que novo decreto regulamentar seja editado.
Informação n° 1013/2025-PGM.AJC
PROCURADORIA GERAL DO MUNICÍPIO
Coordenadoria Geral do Consultivo
Senhora Coordenadora Geral
Trata-se de consulta formulada pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania - SMDHC, para análise e ratificação do parecer do doc. 129109716, emitido após consulta formulada pela Assessoria Técnica (doc.126629433), diante da aparente duplicidade normativa decorrente da edição da Lei Municipal n° 18.210/2024, que "Dispõe sobre o Programa de Segurança Alimentar e Nutricional no Município de São Paulo, institui o Auxílio Reencontro, a Vila Reencontro e cria o Fundo de Abastecimento Alimentar de São Paulo".
Conforme observado na consulta formulada, o objeto da referida lei é idêntico ao da Lei Municipal n° 17.819/2022, que já se encontra devidamente regulamentada pelos Decretos Municipais n° 61.564/2022 e 62.149/2023, bem como pela Portaria SMDHC n° 56/25023.
Em resposta à consulta, concluiu o parecer da Assessoria Jurídica da SMDHC que:
1. A Lei n° 17.819, de 29 de junho de 2022, encontra-se tacitamente revogada pela Lei n° 18.210, de 26 de dezembro de 2024, com fundamento no artigo 2°, § 1°, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei n° 4.657/1942), uma vez que a lei posterior regulou inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.
2. Como consequência direta da revogação, os atos normativos infralegais que regulamentavam a Lei n° 17.819/2022 (Decreto n° 61.564/2022, Decreto n° 62.149/2023 e Portaria SMDHC n° 56/2023) perderam seu fundamento de validade e, portanto, sua eficácia. Desta forma, é juridicamente indispensável e obrigatória a edição de um novo decreto regulamentador, a fim de dar plena exequibilidade à Lei n° 18.210/2024, nos termos do que determina expressamente o seu artigo 18.
É o relatório do essencial.
De acordo com o que se extrai dos autos do SEI 6021.2024/0014119-1, que seguem relacionados ao presente, a Lei Municipal n° 17.819/2022, editada para dispor sobre o Programa de Segurança Alimentar e Nutricional do Município de São Paulo, instituir o Auxílio Reencontro e a Vila Reencontro, e criar o Fundo de Abastecimento Alimentar de São Paulo (FAASP), foi objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 2303717-10.2023.8.26.0000, sob o fundamento de vício de iniciativa.
Conforme a petição inicial, em síntese, o Poder Legislativo teria invadido matéria de iniciativa privativa do Poder Executivo, afrontando o princípio da separação de poderes, além de não ter observado, na propositura da lei, o princípio da participação popular.
O Tribunal de Justiça julgou a ação procedente para declarar a inconstitucionalidade formal e material da norma impugnada. Em sede de recurso extraordinário, entretanto, o Supremo Tribunal Federal deu provimento ao recurso do Município de São Paulo para declarar a constitucionalidade da Lei Municipal n° 17.819/2022 e de seus Decretos regulamentares n° 61.564/2022 e n° 62.14/2023, sob o fundamento de que a reserva de iniciativa de lei do chefe do Poder Executivo não implica no afastamento da atuação legiferante em políticas públicas. A decisão transitou em julgado.
Não obstante, antes que fosse proferida a decisão da Suprema Corte, foi publicada em 27/12/2024, a Lei Municipal n° 18.210/2024, de iniciativa do chefe do Poder Executivo, que dispõe sobre o Programa de Segurança Alimentar e Nutricional no Município de São Paulo, institui o Auxílio Reencontro, a Vila Reencontro e cria o Fundo de Abastecimento Alimentar de São Paulo.
Dada a edição de nova lei disciplinando a mesma matéria da Lei Municipal n° 17.819/2022, concluímos, tal como se concluiu no parecer do doc. 129109716, que a lei posterior revogou tacitamente a anterior, conforme expressa disposição do art.2°, §1° do Decreto-Lei n° 4.657/1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - LINDB).
Ainda de acordo com o referido parecer, como consequência direta da revogação, os atos normativos infralegais que regulamentavam a Lei n° 17.819/2022 (Decreto n° 61.564/2022, Decreto n° 62.149/2023 e Portaria SMDHC n° 56/2023) perderam seu fundamento de validade e, portanto, sua eficácia, de forma que é juridicamente indispensável e obrigatória a edição de um novo decreto regulamentador, a fim de dar plena exequibilidade à Lei n° 18.210/24.
Não se discorda completamente das conclusões expostas no parecer encaminhado para análise e ratificação. O ideal, de fato, é que seja editado com a maior brevidade possível, decreto regulamentador da Lei Municipal n° 18.210/24.
O problema, entretanto, da conclusão exposta no referido parecer, é que, se entre a edição da nova lei e a sua regulamentação decorrer um longo lapso temporal, os cidadãos podem ficar privados de serviços essenciais à execução de política pública relevante. Não se pode ignorar, no caso em análise, que se trata de norma que visa dar efetividade a direitos sociais da população mais vulnerável, disciplinando a segurança alimentar e nutricional dos cidadãos de baixa renda.
Posto o problema, questiona-se: é possível a prevalência de preceitos regulamentares após a revogação da lei formal que regulamentam?
Em regra, como bem destacado no parecer submetido à análise, uma vez revogada a lei formal, automaticamente cessa a vigência de seus regulamentos complementares. Entretanto, nem sempre ocorre essa perda automática de vigência.
Para evitar que a ausência de decreto regulamentador obste a implementação de direitos ou a execução de políticas públicas importantes, conforme destaca o autor português Marcelo Caetano, o ideal é a nova lei manter expressamente a vigência do antigo regulamento enquanto não surgem os novos. Mas, mesmo não havendo menção expressa na lei, será necessário continuar a observar os preceitos do antigo regulamento em tudo que não contrariar a nova lei (CAETANO, Marcelo. Princípios Fundamentais do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p.103)
No mesmo sentido, Hely Lopes Meirelles leciona que, se a nova lei tratar da mesma questão da lei revogada, o antigo regulamento continuaria em vigor (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 35. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009. p. 183).
Assim também decidiu o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Habeas Corpus n° 108.190, concluindo que "desde que a revogação da lei seja feita por outra que venha disciplinar a mesma matéria, o decreto que regulamentava a primeira continua válido para a segunda, até a expedição de novo decreto, a fim de que se evite o vácuo legislativo indesejado pelo legislador".
Entende-se possível, portanto, que os preceitos regulamentares antigos continuem a regulamentar a nova lei naquilo que não for incompatível, até que novos regulamentos sejam editados.
Nesse sentido já se manifestou a Assessoria Jurídico Consultiva da PGM nos pareceres ementados sob o n° 10.615 e n° 10.637:
"EMENTA N° 10.615 - Limpeza Urbana. Lei n° 10.315, de 30 de abril de 1987. Superveniência da Lei n° 13.478, de 30 de dezembro de 2002. Revogação do diploma legal anterior. Conflito com a Lei n° 13.369, de 3 de junho de 2002. Inexistência. Fiscalização. Observância do Decreto n° 42.238/02 até que novo decreto do Executivo disponha de modo diferente" (g.n.).
"EMENTA N° 10.637 - Administrativo. Limpeza Urbana. Lei n° 10.315, de 30 de abril de 1987. Superveniência da Lei n° 13.478, de 30 de dezembro de 2002. Revogação do diploma legal anterior. Fiscalização. Observância do Decreto n° 42.238/02 até que novo decreto do Executivo disponha de modo diferente. Lei n° 10.508, de 4 de maio de 1988. Aplicação a terrenos edificados e quando se tratar de fechamento e passeio de terrenos não edificados. Sanção de advertência prevista na Lei n° 13.478/02. Regulamentação. Necessidade" (g.n.)
Como ressalta Flávio Garcia Cabral em artigo publicado na Revista de Direito Administrativo (CABRAL, Flávio Garcia - O que ocorre com os regulamentos quando a lei é revogada por uma nova legislação? - Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 281, n. 1, p. 271-294, jan./abr. 2022), a regulamentação não é essencialmente do instrumento formal (lei), mas sim da matéria ou conteúdo desta. Nesses termos, conforme expõe o autor:
"(...) quando há o advento de uma nova lei, que revoga a anterior, mas mantém o mesmo conteúdo material, não há aqui a revogação da fonte normativa de validade do regulamento (o conteúdo material que carece de regulamentação continua a existir, ainda que sob a roupagem de uma diferente lei). Do mesmo modo, neste caso continua existindo o instrumento formal necessário a vincular este conteúdo material (a lei), ainda que sob uma numeração diferente.
Em outros termos, cabe ao regulamento versar sobre o conteúdo material da lei "X", e não sobre a lei "X" em si mesma (embora a existência da lei como veículo para a vinculação deste conteúdo seja imprescindível). Mantido o conteúdo material em uma lei "Y", o regulamento continua a possuir vigência, uma vez que não há a extinção do seu fundamento de validade (o conteúdo material expresso por meio de uma lei), mas somente sua transposição para um diferente veículo legislativo."
O raciocínio encontra fundamento jurídico, ainda, no art.30 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), segundo o qual:
"Art. 30. As autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas.
Parágrafo único. Os instrumentos previstos no caput deste artigo terão caráter vinculante em relação ao órgão ou entidade a que se destinam, até ulterior revisão."
O referido artigo impõe à Administração Pública o dever de uniformização e atuação conforme precedentes, haja vista que a reiteração de decisões no mesmo sentido confere maior certeza e confiança ao cidadão em relação aos atos administrativos.
Nesse sentido, a aplicação de antigos preceitos regulamentadores para viabilizar a execução de nova lei, que dispõe sobre o mesmo conteúdo da lei revogada, será garantia de atuação administrativa uniforme e conforme precedentes, evitando distorções e atuações desiguais na execução do conteúdo da lei, decorrente da ausência de decreto regulamentador e até que novos preceitos regulamentadores sejam editados.
Assim, ratificamos parcialmente as conclusões do parecer do doc. 129109716, concluindo que:
1. A Lei n° 17.819, de 29 de junho de 2022, encontra-se tacitamente revogada pela Lei n° 18.210, de 26 de dezembro de 2024, com fundamento no artigo 2°, § 1°, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei n° 4.657/1942), uma vez que a lei posterior regulou inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.
2. Deve ser editado novo decreto regulamentador para dar exequibilidade à Lei n° 18.210/2024, nos termos do artigo 18. Não obstante, até que os novos preceitos regulamentadores sejam editados, tendo em vista que a nova lei dispõe sobre a mesma matéria da lei revogada, é possível a aplicação dos preceitos regulamentares antigos (Decreto n° 61.564/2022, Decreto n° 62.149/2023 e Portaria SMDHC n° 56/2023), naquilo que não for incompatível com a Lei n° 18.210/2024, para não obstar a execução de política pública relevante e voltada aos mais necessitados, e de modo a garantir a atuação administrativa uniforme e conforme precedentes.
Com o nosso entendimento, encaminhamos o presente, propondo a posterior remessa dos autos à Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania - SMDHC para ciência e prosseguimento.
À elevada consideração.
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São Paulo, 17/09/2025.
ANA PAULA BIRRER
Procuradora do Município Assessora
OAB/SP 176.193
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De acordo.
São Paulo, 17/09/2025.
JOSÉ FERNANDO FERREIRA BREGA
Procurador Assessor Chefe - AJC
OAB/SP 173.027
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processo SEI n° 6012.2022/0010067-0
INTERESSADO: SECRETARIA MUNICIPAL DE DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA -SMDHC
ASSUNTO: Revogação tácita da Lei Municipal n° 17.819/2022 com a edição da Lei Municipal n° 18.210/2024, que dispõe sobre a mesma matéria. Possibilidade de aplicação dos preceitos regulamentares antigos (Decreto n° 61.564/2022, Decreto n° 62.149/2023 e Portaria SMDHC n° 56/2023), naquilo que não for incompatível com a Lei n° 18.210/2024, até que novo decreto regulamentar seja editado, para não obstar a execução de política pública importante e voltada aos mais necessitados, e de modo a garantir a atuação administrativa uniforme e conforme precedentes.
Cont. da Informação n° 1013/2025-PGM.AJC
PROCURADORIA GERAL DO MUNICÍPIO
Senhora Procuradora Geral
Encaminho o presente com a manifestação da Assessoria Jurídico-Consultiva desta Coordenadoria Geral (doc.142018409), que acolho, propondo a posterior remessa dos autos à Secretaria Municipal Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania - SMDHC para ciência e prosseguimento.
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São Paulo, 17/09/2025
TICIANA NASCIMENTO DE SOUZA SALGADO
Procuradora Coordenadora Geral do Consultivo - CGC
OAB/SP 175.186
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processo SEI n° 6012.2022/0010067-0
INTERESSADO: SECRETARIA MUNICIPAL DE DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA -SMDHC
ASSUNTO: Revogação tácita da Lei Municipal n° 17.819/2022 com a edição da Lei Municipal n° 18.210/2024, que dispõe sobre a mesma matéria. Possibilidade de aplicação dos preceitos regulamentares antigos (Decreto n° 61.564/2022, Decreto n° 62.149/2023 e Portaria SMDHC n° 56/2023), naquilo que não for incompatível com a Lei n° 18.210/2024, até que novo decreto regulamentar seja editado, para não obstar a execução de política pública importante e voltada aos mais necessitados, e de modo a garantir a atuação administrativa uniforme e conforme precedentes.
Cont. da Informação n° 1013/2025-PGM.AJC
SMDHC
Senhor Secretário
Encaminho-lhe o presente, para ciência da manifestação da Assessoria Jurídico-Consultiva desta Coordenadoria Geral (doc. 142018409), que acolho para ciência e prosseguimento.
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São Paulo, 17/09/2025.
LUCIANA SANTANA NARDI
Procuradora Geral do Município
OAB/SP 173.307
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Este texto não substitui o original publicado no Diário Oficial da Cidade de São Paulo