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RAZÕES DO VETO AO PROJETO DE LEI Nº 608/2003; OFÍCIO DE 20 de Dezembro de 2005

Razões de Veto ao Projeto de Lei nº 608/03

OF ATL nº 243/05

Ref. Ofício SGP 23 nº 5504/2005

Senhor Presidente

Por meio do ofício referenciado, ao qual ora me reporto, Vossa Excelência encaminhou à sanção cópia autêntica do Projeto de Lei nº 608/03, aprovado por essa Egrégia Câmara, de autoria da Vereadora Claudete Alves, que obriga os estabelecimentos que especifica a manter em local visível cartaz com dizeres do Estatuto da Criança e do Adolescente.

A propositura, em síntese, determina a manutenção, por restaurantes, hotéis, bares, motéis, pousadas, boates, casas de espetáculos artísticos e "rodoviários", de cartaz que reproduza a definição do crime constante do artigo 244-A do referido Estatuto ¬— submissão de criança ou adolescente à prostituição ou à exploração sexual — com a indicação das penas aplicáveis no caso de sua prática.

Sem embargo do meritório propósito que norteou sua autora, a medida não reúne condições para ser convertida em lei, motivo que me impele a vetá-la integralmente, com fulcro no § 1º do artigo 42 da Lei Orgânica do Município de São Paulo.

Preliminarmente, cabe assinalar que o texto aprovado está permeado de incorreções de ordem técnico-legislativa, a dificultar o entendimento de seu exato conteúdo normativo e, via de conseqüência, sua aplicação e fiscalização.

De fato. Logo no artigo 1º, o vocábulo "rodoviários" revela-se sem sentido no contexto em que utilizado, não sendo possível compreender se se refere à localização do estabelecimento (à beira de rodovias) ou à natureza do espetáculo ou, ainda, aos terminais rodoviários.

No inciso III do artigo 2º, que impõe a lavratura de multa com valor duplicado na hipótese de reincidência, outra impropriedade técnica se verifica. Explica-se: para efeito de aplicação de penalidades é imprescindível a perfeita caracterização da situação em que incide. No caso em análise, a primeira multa, sabe-se, será aplicada se a irregularidade não vier a ser sanada no prazo de 30 dias contados da notificação (incisos I e II). Todavia, o texto, ao tratar da segunda multa, por não definir o que seja situação de reincidência, o prazo em que passa a ser considerada e o início de sua contagem (a partir da notificação ou da primeira multa) não detém condições de ser aplicado.

Como se vê, pela leitura dos mencionados dispositivos não se pode concluir, com a necessária certeza, o alcance que o legislador pretendeu conferir à norma, tudo em desconformidade com a regra exposta no artigo 11 da Lei Complementar Federal nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis.

Merece exame, também, o dispositivo que prevê, para a hipótese de persistir a irregularidade após a imposição da multa em dobro, a suspensão da licença por até 30 dias e, depois desse prazo, a cassação, interdição e lacração do estabelecimento.

De pronto, pondere-se que suspensão de licença é medida inexistente em nosso sistema jurídico. Com efeito, a licença — direito subjetivo do interessado, condicionado ao atendimento dos respectivos requisitos legais — somente admite causas de extinção, como a revogação (por superveniência de interesse público justificado, mediante indenização), a anulação (quando constatada ilegalidade na sua expedição) e a cassação (quando o interessado, no decorrer de sua validade, descumpre as normas legais), todas comprovadas mediante processo administrativo com oportunidade de ampla defesa por parte do interessado.

A par disso, é de se convir que as sanções de cassação de auto de licença de funcionamento e de interdição e lacração de estabelecimento não poderiam ser impostas devido à mera ausência do cartaz. Imagine-se o estabelecimento que, por atender os requisitos legais, atua munido da devida licença municipal e sem extrapolar os seus limites, contudo, não afixou o cartaz. Seria razoável que fechasse suas portas?

Dessa indagação decorre a nítida percepção da desproporcionalidade dessas medidas punitivas se comparadas à infração que visam impedir e ao dano causado à coletividade ou ao Município, podendo a sua aplicação, inclusive, caracterizar a ocorrência de excesso de poder ou abuso de autoridade, motivos esses de nulidade da própria sanção.

Como ensina Hely Lopes Meirelles, “A proporcionalidade entre a restrição imposta pela Administração e o benefício social que se tem em vista, sim, constitui requisito específico para validade do ato de polícia, como também a correspondência entre a infração cometida e a sanção aplicada, quando se tratar de medida punitiva. Sacrificar um direito ou uma liberdade do indivíduo sem vantagem para a coletividade invalida o fundamento social do ato de polícia, pela desproporcionalidade da medida.” (in Direito Municipal Brasileiro, 13a edição, p. 460).

Na mesma senda, preleciona a professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro que “Quanto ao objeto, ou seja, quanto ao meio de ação, a autoridade sofre limitações, mesmo quando a lei lhe dê várias alternativas possíveis. Tem aqui aplicação um princípio de direito administrativo, a saber, o da proporcionalidade dos meios aos fins; isto equivale a dizer que o poder de polícia não deve ir além do necessário para a satisfação do interesse público que visa proteger; a sua finalidade não é destruir os direitos individuais, mas, ao contrário, assegurar o seu exercício, condicionando-o ao bem-estar social; só poderá reduzi-los quando em conflito com interesses maiores da coletividade e na medida estritamente necessária à consecução dos fins estatais.” (in Direito Administrativo, 18ª edição, p.116)

Examinada sob outro aspecto, observa-se que as condutas que a propositura visa coibir já estão adequadamente tipificadas como crimes no artigo 244-A do Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como previstas as correspondentes repercussões de natureza penal, aplicáveis aos seus autores e extensíveis ao proprietário, gerente ou responsável pelo local em que consumadas (§ 1º). E mais: nos termos do § 2º desse dispositivo, “constitui-se efeito obrigatório da condenação a cassação da licença de localização e de funcionamento do estabelecimento”.

Ademais, é imperioso apontar que no âmbito municipal existe, também, legislação a cuidar do assunto. Trata-se da Lei nº 14.028, de 8 de julho de 2005, que, em consonância com mencionado Estatuto e sem conter as incorreções do texto aprovado, ora apontadas, ordena a cassação da licença dos estabelecimentos que permitirem a prática, facilitarem ou fizerem apologia, incentivo e mediação da exploração sexual de crianças e adolescentes, dentre outras ações lesivas à sociedade.

Por outro lado, é forçoso convir que a afixação de mero cartaz em alguns tipos de estabelecimentos, não teria, efetivamente, o condão de extirpar da sociedade aludidas condutas criminosas, como, aliás, reconhecido na própria Justificativa apresentada pela Vereadora. A ineficiência da medida, a bem na verdade, para o fim a que se destina é evidente, a recomendar o emprego dos recursos públicos em ações que resultem em efetivo impacto positivo sobre a política de proteção a crianças e adolescentes.

Por último, ao enumerar taxativamente os estabelecimentos abrangidos pela obrigação, a propositura termina por dela excluir, sem razão lógica, outras atividades, tais como pensões, salões de beleza, casas de massagem, clubes desportivos, estúdios fotográficos e agências de modelo, valendo até mesmo lembrar que a prostituição e a exploração sexual de pessoas é vedada em todo local, seja público ou particular.

Concluindo, pelas razões expostas, sou compelido a vetar integralmente o projeto aprovado, devolvendo o assunto ao reexame dessa Egrégia Câmara.

Na oportunidade, renovo a Vossa Excelência protestos do mais alto apreço e consideração.

JOSÉ SERRA

Prefeito

Ao

Excelentíssimo Senhor

ROBERTO TRIPOLI

Digníssimo Presidente da Câmara Municipal de São Paulo

 

 

Este texto não substitui o original publicado no Diário Oficial da Cidade de São Paulo