Razões de Veto ao Projeto de Lei nº 468/99
Ofício ATL nº 200/03
Senhor Presidente
Nos termos do Ofício nº 18/Leg.3/0148/2003, Vossa Excelência encaminhou à sanção cópia autêntica da lei decretada por essa Egrégia Câmara, relativa ao Projeto de Lei nº 468/99, proposto pelo Vereador Dalton Silvano, que autoriza a criação de programa de requalificação urbana e funcional para o bairro do Cambuci.
Não obstante os meritórios propósitos de que se imbuiu seu ilustre autor, impõe-se o veto total ao texto aprovado, com fulcro no § 1º do artigo 42 da Lei Orgânica do Município de São Paulo, por inconstitucionalidade, ilegalidade e contrariedade ao interesse público, nos termos das razões a seguir aduzidas.
A mensagem aprovada visa, em resumo, autorizar o Poder Executivo a criar um programa de requalificação urbana e funcional para o Bairro do Cambuci, abrangendo ações relacionadas à criação de pólos de recuperação urbana e de fachadas, elaboração de legislação tratando de incentivos fiscais à iniciativa privada, normas diferenciadas para anúncio publicitário, reestruturação do sistema de trânsito, regulamentação da inserção de equipamentos e mobiliário no espaço público, ampliação da arborização e outras ações voltadas à remodelação daquele bairro. Autoriza, ainda, a criação de diretrizes, projetos e ações de intervenção para a solução de problemas na região, normas de implantação, execução, fiscalização, manutenção e gerenciamento único dessas ações, além da revisão da lei municipal de zoneamento.
Patente, pois, que a medida versa sobre a realização de serviços públicos, os quais são conceituados expressamente como bens de interesse comum a todos os munícipes, nos termos do artigo 3o da Lei Municipal nº 10.365, de 22 de setembro de 1987, legislando, portanto, sobre matéria relativa à organização administrativa, serviços públicos e administração de bens municipais, mediante a imposição de procedimentos e encargos geradores de despesas para o erário, o que é vedado ao Legislativo, por expressa disposição legal.
Destarte, as leis que tratam de organização administrativa e serviços públicos são de iniciativa privativa do Prefeito, a quem compete igualmente a administração dos bens municipais, “ex vi” do disposto no inciso IV do § 2o do artigo 37 e no artigo 111 da Lei Maior Local, respectivamente.
Indiscutivelmente, o texto aprovado extrapola as atribuições do Legislativo e invade a esfera de competências específicas do Executivo, incidindo em ingerência nos órgãos municipais competentes. Logo, vislumbra-se infringência ao princípio constitucional da independência e harmonia entre os Poderes, consagrado no artigo 2o da Constituição Federal e reproduzido nos artigos 5o da Constituição Estadual e 6o da Lei Orgânica do Município de São Paulo.
Com efeito. Observe-se que o ato decretado, não obstante expresse em sua ementa e em seu artigo 1o tratar-se de uma mera autorização ao Poder Executivo, ao fixar, desde já, nos artigos 2º e 3º, diretrizes que deverão restar estabelecidas no referido plano, assim como todas as ações que deverão fazer parte do programa de requalificação urbana e funcional, revela uma verdadeira imposição ao Poder Executivo.
Por outro lado, é mister ressaltar que a medida determina a ampliação de serviços públicos de grandes dimensões e elevados custos, os quais demandam a existência de verbas, sem a indicação dos recursos correspondentes, achando-se em desacordo com o artigo 25 da Constituição do Estado de São Paulo e com os artigos 15 e 16 da Lei Complementar Federal nº 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), o que a inquina simultaneamente de inconstitucionalidade e ilegalidade.
No que tange à pretendida reestruturação do sistema de trânsito, note-se que a implantação não depende de lei, mas inclui-se nas competências próprias do Executivo, pois os órgãos executivos de trânsito dos Municípios, consoante o artigo 24, inciso II, do Código de Trânsito Brasileiro, possuem competência para “planejar, projetar, regulamentar e operar o trânsito de veículos, de pedestres, de animais, e promover o desenvolvimento da circulação e da segurança dos ciclistas.”
Tal dispositivo determina caber aos órgãos executivos de trânsito avaliar e executar a fiscalização de trânsito, autuar e aplicar as penalidades e medidas administrativas cabíveis, por infrações de circulação, estacionamento e parada previstas no aludido diploma legal, notificando os infratores e arrecadando as multas aplicadas, nos termos dos incisos VI e VII do citado artigo.
Assim, dada a natureza eminentemente técnica da questão, a criação de qualquer programa demanda estudos por parte dos setores técnicos da Companhia de Engenharia de Tráfego, objetivando verificar o impacto da medida no sistema viário, com base em estatísticas e na observação constante da circulação do trânsito. Portanto, para cada caso e de acordo com criteriosa avaliação, o órgão de trânsito vem, ao longo do tempo, implantando medidas diferenciadas, que podem ser adotadas isolada ou conjuntamente, em harmonia com as características da região a ser acessada.
Ademais, o artigo 6o da Lei nº 13.430, de 13 de setembro de 2002, que instituiu o Plano Diretor Estratégico, já prevê a elaboração do Plano de Circulação e Transporte como um de seus complementos, com os objetivos, diretrizes e ações estratégicas dispostos em seus artigos 82 a 84, não de forma isolada, mas abrangendo todos os bairros e regiões da cidade, de forma sistemática e ordenada.
Quanto à disposição referente a normas diferenciadas sobre anúncios publicitários para vigorarem no Cambuci, impende considerar que a Lei nº 13.525, de 28 de fevereiro de 2003, já dispõe sobre a ordenação de anúncios na paisagem de todo o território municipal, tendo como objetivos, em síntese, o bem-estar estético, cultural e ambiental da população, a segurança das edificações e da população, a valorização do ambiente natural e construído, a segurança, a fluidez e o conforto nos deslocamentos de veículos e pedestres, a percepção e a compreensão da paisagem, a preservação da memória cultural, dos logradouros e das fachadas, o fácil acesso e utilização dos serviços de interesse coletivo e de emergência.
Ao disciplinar a matéria, o mencionado diploma legal relaciona a inserção dos anúncios com sua localização na Rede Viária Estrutural, tal como definida nos artigos 101, § 1o , inciso II, e 110 da Lei do Plano Diretor Estratégico .
Não há, dessa forma, possibilidade de edição de normas diferenciadas para o bairro do Cambuci, sob pena de confronto com a Lei nº 13.525, de 2003, que regulamenta a matéria em todos os bairros da cidade, indistintamente e de conformidade com um plano que tem por mira o tratamento uniforme da paisagem urbana em todo o território paulistano.
Não obstante as razões de inconstitucionalidade e ilegalidade apontadas sejam suficientes para fundamentar o veto integral do texto aprovado, a propositura apresenta-se contrária ao interesse público, incidindo, ainda, em impropriedades de natureza técnico-legislativa que não recomendam sua conversão em lei.
Importa salientar que o artigo 5o da Lei nº 13.399, de 1o de agosto de 2002, estabelece, dentre as atribuições das Subprefeituras, no que interessa à presente apreciação, a de instituir mecanismos que democratizem a gestão pública e fortaleçam as formas participativas existentes em âmbito regional, bem como as de planejar, controlar e executar os sistemas locais, ampliar a oferta, agilizar e melhorar a qualidade dos serviços locais, a partir das diretrizes centrais.
O bairro do Cambuci integra a Subprefeitura da Sé, como disposto no artigo 7o, item 9, da citada lei, e, portanto, sujeita-se às ações previstas no Plano Reconstruir o Centro, instituído pelo Decreto nº 40.753, de 19 de junho de 2001. Trata-se de um programa de gestão urbana, em que se encontram arroladas as providências a serem adotadas pelo Poder Público e pela iniciativa privada, com vistas à requalificação dos espaços públicos e privados que constituem o Centro da Cidade de São Paulo.
Mais do que um plano, ele resume o esforço concreto da atual Administração em reabilitar a área central em todos os seus aspectos. Nessa perspectiva, traz recomendações para melhorar as condições de circulação de seus usuários, incluindo-se aí a garantia de segurança pessoal e do patrimônio, a iluminação, a arborização, a limpeza, a recuperação de banheiros públicos, além de medidas visando à repovoação da área central e à melhoria da qualidade de vida de seus moradores, ao incentivo e ampliação das atividades econômicas e do turismo, ao aprimoramento e desenvolvimento de mecanismos de preservação das ruas, praças, largos e edifícios que contam a história de formação do centro da cidade.
Tal plano, a par de orientar as ações necessárias à reorganização dos espaços público e privado, permite de forma isonômica o planejamento anual de recursos da Subprefeitura da Sé, para todo o seu território administrativo.
Cabe ressaltar, ainda, que a propositura dirige-se ao Distrito do Cambuci nos termos delimitados pela Lei nº 11.220, de 20 de maio de 1992, de cunho meramente administrativo, os quais não correspondem aos atuais critérios urbanísticos, revestindo-se de impropriedade ao excluir toda a face ímpar da Rua da Móoca, sem qualquer justificativa para que isso ocorra.
Outrossim, cumpre destacar que o Plano Regional, ora em fase de elaboração, com a participação da sociedade organizada e da população, a partir das determinações do Plano Diretor Estratégico norteará, com maior precisão, o uso e ocupação do solo de todos os territórios que compõem a Subprefeitura da Sé, bem assim orientará a promoção imobiliária, sobretudo a de interesse social e indicará os equipamentos sociais prioritários da região, sem privilégios a qualquer bairro.
Quanto à revisão da Lei de Uso e Ocupação do Solo, já em fase de elaboração, está prevista no Plano Diretor Estratégico a determinação de seu encaminhamento ao Legislativo (artigo 6o), de forma sistemática e harmoniosa para toda a cidade. Afigura-se, portanto, também neste tópico, dispensável o ato decretado.
Igualmente sem necessidade a edição de plano específico para o bairro do Cambuci, para tratar de segurança urbana, iluminação pública, paisagem urbana, equipamentos sociais, espaços públicos, áreas verdes, turismo, temas esses plenamente regidos pelo Plano Diretor Estratégico.
De fato, como se observa, a legislação em vigor já contempla o objeto da propositura, sendo totalmente contrária ao interesse público a superveniente edição de norma legal que venha a dispor sobre matéria que demanda tratamento normativo sistemático, em evidente detrimento do interesse maior na busca de sua consolidação, consoante previsto na Lei Complementar Federal nº 95, de 26 de fevereiro de 1998 (alterada pela Lei nº 107/01), cujos incisos I, II e IV, do artigo 7o, dispõem que as matérias conexas ou afins devem ser reunidas, mediante sua integração em diplomas legais únicos e relativos a assuntos específicos. A par disso, a enumeração dos dispositivos do texto vindo à sanção desatende às regras estabelecidas no artigo 10 da mesma lei, incorrendo em imperfeição de natureza técnico-legislativa.
Pelo exposto, ante as razões apontadas, que evidenciam a inconstitucionalidade, ilegalidade e contrariedade ao interesse público que maculam irremediavelmente o projeto aprovado, vejo-me compelida a vetá-lo na íntegra, com fulcro no § 1o do artigo 42 da Lei Orgânica do Município de São Paulo.
Assim, devolvo o assunto à apreciação dessa Egrégia Câmara que, com seu elevado critério, se dignará a reexaminá-lo, renovando, na oportunidade, a Vossa Excelência protestos de elevado apreço e distinta consideração.
MARTA SUPLICY
Prefeita
Ao Excelentíssimo
Senhor ARSELINO TATTO
Presidente da Câmara Municipal de São Paulo
Este texto não substitui o original publicado no Diário Oficial da Cidade de São Paulo