Razões de Veto ao Projeto de Lei nº 337/07
OF. ATL nº 37/09
Ref.: Ofício SGP-23 nº 00115/2009
Senhor Presidente
Por meio do ofício em epígrafe, Vossa Excelência encaminhou à sanção cópia autêntica da lei decretada por essa Egrégia Câmara, em sessão de 18 de dezembro de 2008, referente ao Projeto de Lei nº 337/07, de autoria do Vereador Francisco Chagas, que cria o cadastro para prestação de serviços à comunidade, relativo ao cumprimento das penas alternativas, previstas na legislação federal em vigor.
Segundo a justificativa apresentada por seu autor, a propositura tem por objetivo criar um mecanismo que incentive e facilite, aos Poderes constituídos do Estado, do Poder Judiciário e da Administração Municipal, a utilização desse instituto, por meio da criação de um cadastro para centralizar, racionalizar, direcionar e otimizar a prestação de serviços à comunidade, a fim de promover a ressocialização e a reinserção dos indivíduos que cometeram delitos de menor gravidade, evitando sua marginalização, com custos elevados ao Estado e à sociedade.
Em que pese o louvável propósito de que se reveste, a propositura não reúne condições de ser convertida em lei, impondo-se seu veto total, na conformidade das razões que passo a expor.
O projeto de lei aprovado cria cadastro para prestação de serviços à comunidade, relativo ao cumprimento das penas alternativas previstas na legislação federal em vigor, autorizando, para sua operacionalização, a celebração de convênio entre os órgãos competentes da Administração Municipal e Estadual. Estabelece, ainda, que referido cadastro será coordenado pela Secretaria Municipal de Coordenação das Subprefeituras, em conjunto com a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, a qual centralizará as informações e controlará a execução do sistema; incumbe à primeira Pasta elaborar compilação e organização dos serviços a serem realizados nas Subprefeituras, segundo sua prioridade ou urgência, encaminhando tais informações à segunda Secretaria, que as disponibilizará em seu “site” específico para consulta pública e poderá direcionar a prestação de serviços para as associações da sociedade civil e organizações não-governamentais – ONGs que deles necessitem e mantenham convênios ou outras parcerias com o Município, cabendo-lhe também encaminhar, mensalmente, à Central de Penas e Medidas Alternativas de São Paulo, vinculada à Secretaria da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, relação completa dos órgãos municipais, associações ou ONGs interessadas nesses serviços. Por fim, prevê que a prestação de serviços à comunidade poderá ser executada em todos os órgãos municipais, tanto da Administração Direta quanto Indireta, incluindo suas autarquias, sociedades de economia mista, empresas e fundações públicas.
De fato, não há como negar que o texto vindo à sanção excede a esfera de atribuições legais do Município, dispondo sobre matérias que, por força de mandamentos constitucionais, inscritos nos artigos 22, inciso I, e 24, inciso I, da Carta Magna, incluem-se nas competências legislativas específicas da União e do Estado, inseridas no campo do Direito Penal e do Direito Penitenciário, ao mesmo tempo em que conflita com a legislação federal e estadual que rege o tema.
A propositura versa sobre prestação de serviços à comunidade, que constitui espécie de pena restritiva de direitos, disciplinada pelo Código Penal, em seus artigos 43, inciso IV, e 46, e pela Lei de Execução Penal, em seus artigos 147 e 150, segundo os quais é ela aplicável às condenações superiores a seis meses de privação da liberdade, consistindo na atribuição de tarefas ao condenado, devendo ser executadas em entidades públicas ou assistenciais, hospitais, escolas, orfanatos e outros estabelecimentos congêneres, em programas comunitários ou estatais, cabendo ao juiz da execução designar a entidade ou programa comunitário ou estatal devidamente credenciado ou convencionado, junto ao qual o condenado deverá trabalhar gratuitamente, de acordo com suas aptidões.
Note-se, contudo, que o ordenamento federal não admite a prestação desses serviços em associações ou organizações que não integrem a Administração Publica ou tenham natureza assistencial, bem como em empresas e sociedades de economia mista que exerçam atividade de caráter econômico, como pretendido pela propositura, em virtude de não ser possível, sob a ótica legal, a utilização da mão-de-obra do apenado em atividades com fins lucrativos, sob pena de se configurar ofensa à vedação de enriquecimento ilícito, atentando contra as finalidades do instituto.
Já no âmbito estadual, o assunto é regulado pelos Decretos nº 47.392, de 3 de dezembro de 2002, e nº 47.930, de 7 de julho de 2003. O primeiro disciplina a pactuação de convênios entre a Secretaria da Administração Penitenciária e municípios paulistas, definindo as regras e obrigações das partes, com o objetivo de implantar Centrais de Penas e Medidas Alternativas, destinadas à execução do Programa Integrado de Prestação de Serviços à Comunidade, a que alude o artigo 43 do Código Penal, combinado com a Lei Federal nº 7.210, de 11 de julho de 1984, que institui a Lei de Execução Penal; o segundo estipula as competências e atribuições dos órgãos competentes, prevendo, no inciso IV de seu artigo 3º, competir ao Departamento de Reintegração Social Penitenciário, órgão integrante do Gabinete do Titular da sobredita Pasta, o acompanhamento da operacionalização, bem como a execução, em todas as suas fases, das penas e medidas alternativas, em especial a da prestação de serviços à comunidade, desenvolvidas na Central de Penas e Medidas Alternativas.
Como se vê, a propositura confere ao tema tratamento normativo incompatível com os citados preceitos que regem a matéria, notadamente no tocante ao regramento estadual, que adota a criação de Centrais de Penas e Medidas Alternativas, mediante convênio, como meio apto à execução do programa de prestação de serviços à comunidade, com o intuito de fornecer suporte técnico e administrativo, orientação e acompanhamento para a prestação desses serviços, não contemplando, para tanto, a elaboração de mero cadastro, do que deflui a ilegalidade da medida proposta.
Nesse sentido, é oportuno assinalar que, em abril de 2009, a Secretaria da Administração Penitenciária, por intermédio do Departamento de Reintegração Social Penitenciário, firmou convênio com o Município de São Paulo, por intermédio da Comissão Municipal de Direitos Humanos, tendo por objeto a instalação de Central de Penas e Medidas Alternativas da Mulher, com recorte de gênero feminino, em inteira consonância com as supracitadas leis federais e estaduais.
Por outro lado, resulta claro que, ao ordenar ao Executivo a elaboração do mencionado cadastro e descrever minudentemente as ações e providências que deverá adotar, criando novas incumbências e encargos para os órgãos municipais, em especial a Secretaria Municipal de Coordenação das Subprefeituras e a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, a propositura legisla sobre matéria inerente à organização administrativa, incorrendo em ingerência nas atividades e atribuições das unidades a que se dirige, com evidente interferência em assunto da competência privativa do Executivo. Ademais, sua trabalhosa efetivação impõe aumento de despesas, sem contar, todavia, com a correspondente indicação dos recursos necessários, o que, além de envolver questão de natureza orçamentária, desatende a Lei Complementar Federal nº 101, de 4 de maio de 2000.
Indiscutivelmente, as leis que tratam de organização administrativa e matéria orçamentária são de iniciativa privativa do Prefeito, “ex vi” do disposto no inciso IV do § 2º do artigo 37 da Lei Orgânica do Município de São Paulo, razão pela qual a propositura extrapola as atribuições do Legislativo e invade a esfera de competências do Executivo, malferindo o princípio constitucional da independência e harmonia entre os Poderes, consagrado no artigo 2º da Carta Magna e reproduzido no artigo 5º da Constituição do Estado de São Paulo e no artigo 6º da Lei Maior Local.
Demais disso, é imperativo ressaltar que as providências versadas no projeto aprovado não comportam normatização por lei, envolvendo, na verdade, tão-somente a celebração de convênio entre os entes interessados, na hipótese de existir mútuo interesse.
Ocorre que a celebração de convênios pelo Executivo, autorizada nos termos do parágrafo único do artigo 1º do projeto em comento, constitui ato típico de administração, consoante pacífico entendimento jurisprudencial emanado do Colendo Supremo Tribunal Federal, não cabendo ao Legislativo indicar sua realização ou mesmo autorizar o Executivo a celebrar tais ajustes, pelo que, também sob esse aspecto, a medida configura indevida ingerência de um Poder na seara privativa de outro, violando o princípio constitucional acima invocado.
A par da inconstitucionalidade e ilegalidade que se reveste a medida, cumpre observar que a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social assumiu integralmente a aplicação das medidas sócioeducativas aos adolescentes, tarefa cujo grande porte passou a absorver todo o seu pessoal disponível, motivo pelo qual acha-se totalmente impossibilitada de atuar no segmento da prestação de serviços à comunidade por adultos, atividade, aliás, não contemplada no rol das atribuições da assistência social, previstas nos artigos 203 e 204 da Constituição Federal, na Lei Orgânica da Assistência Social e na Lei Municipal nº 12.524, de 2 de dezembro de 1997.
Por todo o exposto, à vista das razões ora explicitadas, que demonstram os óbices que impedem a sanção do texto aprovado, em virtude de sua inarredável inconstitucionalidade e ilegalidade, vejo-me compelido a vetá-lo na íntegra, com fundamento no § 1º do artigo 42 da Lei Orgânica do Município de São Paulo.
Assim sendo, devolvo o assunto à apreciação dessa Egrégia Câmara, renovando a Vossa Excelência, na oportunidade, meus protestos de apreço e consideração.
GILBERTO KASSAB
Prefeito
Ao
Excelentíssimo Senhor
ANTONIO CARLOS RODRIGUES
Digníssimo Presidente da Câmara Municipal de São Paulo
Este texto não substitui o original publicado no Diário Oficial da Cidade de São Paulo