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PARECER PROCURADORIA GERAL DO MUNICÍPIO - PGM Nº 12.237 de 17 de Dezembro de 2020

EMENTA 12.237
Acidente de trabalho. Caracterização da COVID.19 como doença ocupacional ou acidente de trabalho por equiparação (contaminação acidental). Contaminação comunitária decorrente do estado de pandemia, que exige a comprovação do nexo causal, sob pena de afastamento da proteção legal. Ônus da prova que não cabe ao servidor. Necessidade de apuração interna da natureza da atividade e da exposição ao contágio, com análise da efetiva probabilidade de ocorrência da contaminação por força do exercício da atividade funcional.

processo n° 6029.2020/0012176-6

Informação n. 1381/2020-PGM.AJC

ASSUNTO: Acidente do trabalho. Pecúlio decorrente de falecimento causado pela COVID.19. Encaminhamento, com pedido de orientação.

PROCURADORIA GERAL DO MUNICÍPIO

AJC.CGC - SENHORA PROCURADORA CHEFE

A consulta tratada neste expediente foi bem delineada pelo Departamento Judicial no Encaminhamento 036347019.

O que se deseja é obter orientação a respeito de se considerar ou não presumido o nexo causal entre a função pública e a contaminação pela COVID.19, para caracterização de acidente do trabalho ou doença ocupacional.

A questão é complexa e não está claramente delineada no âmbito da jurisprudência.

A Lei Federal 8.213/91 é aplicável aos vínculos funcionais estatutários no Município de São Paulo, por força do disposto no art. 161 da Lei Municipal 8.989/79.

Segundo o primeiro diploma, as doenças ocupacionais se apresentam sob duas espécies: a doença profissional (inc. I) e a doença do trabalho (inc. II).

A doença profissional é aquela produzida ou desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade e constante da relação elaborada pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social (art. 20, inciso I, da Lei 8213/91).

Já a doença do trabalho (art. 20, inciso II) é aquela adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente, constante da relação mencionada no inciso I.

Há também os acidentes de trabalho equiparados, a exemplo da "doença proveniente de contaminação acidental do empregado no exercício de sua atividade" (art. 21, inciso III).

A moléstia provocada pelo coronavírus, ou COVID.19, pode se enquadrar nestas modalidades, a depender de variáveis fáticas.

Também é aplicável o art. 20, §1° da mesma Lei, que exclui do conceito de trabalho a "doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho".

Iniciado o estado de calamidade pública decorrente da pandemia (reconhecido pelo Decreto Legislativo n. 6, de 20 de março de 2020), foi editada a Medida Provisória n. 927, de 22 de março de 2020, cujo artigo 29 assim estabelecia: "Os casos de contaminação pelo coronavírus não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal."

Este dispositivo foi suspenso pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da cautelar pleiteada nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade números 6342, 6344, 6346, 6349, 6352 e 6354 (Documento 036837533).

A medida provisória teve o seu prazo de vigência encerrado no dia 19 de julho de 2020, de maneira a prejudicar o julgamento do mérito das aludidas ações, que foram antecipadamente extintas.

A pandemia é fato inédito no cenário jurídico nacional, ao menos sob a vigência da Lei 8231/91.

E, como já se afirmou, as soluções não estão claramente delineadas, ainda não se formando jurisprudência nos Tribunais Superiores que permita uma interpretação segura.

A análise da norma federal permite extrair algumas conclusões, porém.

A COVID.19 pode ser adquirida no ambiente de trabalho, como também pode ser adquirida na comunidade, no âmbito familiar ou social. A demonstração da forma e do meio pelo qual ocorreu o contágio não é tarefa simples.

A doença poderá ou não caracterizar acidente de trabalho por equiparação ou doença ocupacional, a depender de circunstâncias que envolvem o exercício profissional.

Há evidente distinção entre a condição dos servidores da saúde expostos diretamente à contaminação, pelo trato com os doentes nos hospitais, e a condição de servidores em regime de teletrabalho, que realizam plantões presenciais ocasionais, e que, no exercício da sua atividade laboral, observam o distanciamento social.

Há situações intermediárias, a exemplo de agentes de segurança que têm contato com comunidades numerosas e não protegidas, e professores encarregados de aulas presenciais, sujeitos à contaminação em função das características de seu trabalho, do contato com grande número de pessoas e ambientes eventualmente propícios à contaminação.

Estas condições podem gerar conclusões diversas, sendo difícil predefini-las a priori e de maneira geral.

Estudemos as categorias legais.

Já se expôs que as doenças ocupacionais podem ser classificadas em doenças profissionais e doenças do trabalho.

Tal é a diferença entre ambas, segundo o artigo "Acidente do Trabalho: Nexo de Causalidade, Concausa e Doenças Ocupacionais" de autoria da Procuradora Federal Lilian Castro de Souza:

"As doenças profissionais decorrem da situação de trabalho comum aos integrantes de determinada categoria profissional, sendo que, nesta hipótese, o nexo causal entre a doença e a atividade é presumido, pois resta evidenciado que o exercício de determinada atividade/profissão pode desencadear a patologia. Ocorre, por exemplo, quando o empregado de uma mineradora, que trabalha exposto ao pó de sílica, contrai silicose (pneumoconiose), sendo essa enfermidade considerada uma doença profissional. Para configuração de determinada doença como profissional, basta a comprovação da prestação do serviço na atividade e o acometimento da doença.

As doenças do trabalho são enfermidades derivadas das condições do exercício do trabalho, do meio ambiente, dos instrumentos utilizados ou dos equipamentos fornecidos, por exemplo, dizendo respeito, especificamente, àquele trabalhador. Dessa forma, dois empregados que desempenham funções idênticas, podem desenvolver moléstias diferentes, sendo que, em um dos casos pode haver caracterização da doença como enfermidade laboral, e, portanto, como acidente do trabalho, enquanto no outro, não."

Parece-nos que os profissionais de saúde encarregados de lidar com paciente de COVID.19 (aqueles da dita "linha de frente") quando contaminados, se enquadrariam na primeira situação, isto é, da doença profissional, presumindo-se o nexo causal.

Já guardas civis metropolitanos, cujas funções podem, a depender de suas características, submetê-los ou não à contaminação, estariam sujeitos à segunda modalidade, ou doença do trabalho.

Para auxiliar a compreensão, recorre-se a outro artigo doutrinário, desta feita de autoria do Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Cláudio Brandão (A COVID-19 e o nexo de causalidade" - Boletim AASP n. 3108, 1a quinzena de julho de 2020, p. 9):

"A diferença substancial entre um e outro grupo é que o nexo de causalidade é presumido nas doenças profissionais, que decorrem das condições da atividade, são inerentes a ela.

No segundo grupo, das chamadas doenças do trabalho, estão aquelas causadas não em função do que a pessoa faz, mas do lugar onde a pessoa trabalha ou de como trabalha - de que maneira aquele ambiente onde é executada a tarefa pode ou não causar o adoecimento."

Os exemplos dados parecem se encaixar perfeitamente nestes conceitos; é inerente aos profissionais de saúde o contato com o coronavírus, enquanto no caso dos guardas civis o local da execução da tarefa e a ausência de meios de proteção podem gerar a exposição ocasional, a exigir a adoção de meios especiais de proteção, ausentes no exercício ordinário.

Mas outros conceitos devem ser considerados.

O primeiro é o de doença decorrente de contaminação acidental, que é acidente de trabalho por equiparação.

O segundo é a consequência da pandemia.

A contaminação acidental poderá ocorrer quando, no exercício de sua atividade, o profissional que normalmente não está exposto a risco elevado a ele se sujeita. Por exemplo, em servidor que exerce funções burocráticas é instado, em função do trabalho, a comparecer à área ambulatorial de um hospital (para entregar um documento, para realizar uma inspeção, para exercer o poder de polícia) e, lá estando, adquire acidentalmente a doença.

A pandemia é estado sanitário que, conceitualmente, contém a condição menor, a endemia. A Lei estabelece que "a doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva" não é considerada doença de trabalho, salvo comprovação de que é resultante da exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho".

No estado de pandemia, mais amplo, o pressuposto do local da habitação não é relevante, dada a dispersão geográfica dos focos de contaminação.

Mas o sentido da norma permanece íntegro e é, aliás, enfatizado: nas hipóteses em que a transmissão comunitária da moléstia não permite definir com clareza a sua origem, milita a presunção de que não se caracterizou a doença do trabalho. Não se deve esquecer que as moléstias laborais são definidas peno liame etiológico; é necessário que o trabalho tenha exposto o segurado a uma situação especial de contágio. Numa pandemia, o nexo de causalidade se torna fluido e difícil de definir.

Ou seja, no estado de pandemia, a incerteza causal é expressiva, levando a concluir que a contaminação pelo vírus não teria sido causada pelo ordinário exercício da atividade laboral, salvo - e a ressslva é expressada na lei - havendo prova de que há contato direto determinado pela natureza desta atividade.

A produção desta prova gera outras questões. A quem cabe o ônus de produzi-la? Ao segurado ou ao empregador? É possível a formação de alguma presunção?

Deve se retornar, neste ponto, à decisão do Supremo Tribunal Federal na medida cautelar que suspendeu o art. 29 da MP 937/2020.

Embora não tenha havido decisão de mérito, obstada pela caducidade da medida provisória, é possível observar, do teor de alguns dos votos majoritários, a preocupação com a abusividade resultante da exigência de que esta prova fosse realizada pelo empregado, de maneira a ferir os postulados da proporcionalidade e da razoabilidade e permitir o retrocesso social.

Transcreve-se, como arquétipo dos demais, o voto do Ministro Alexandre de Moraes, redator do acórdão:

"Assim, o texto do art. 29 da MP 927/2020, ao praticamente excluir a contaminação por doença por coronavírus como doença ocupacional, tendo em vista que transfere aos trabalhadores o ônus de comprovação, destoa, em uma primeira análise, de preceitos constitucionais que asseguram direitos contra acidentes de trabalho (art. 7°, XXVIII, da CF). A norma, portanto, não se mostra razoável, de forma que entendo presentes os elementos necessários para a concessão da medida liminar".

Por outro lado, não se pode, destes votos, concluir que o Supremo tenha admitido que, sem qualquer avaliação, todo e qualquer caso de COVID.19 possa ser considerado doença ocupacional ou acidente de trabalho.

O que se desejou foi gerar a conclusão oposta, isto é, evitar que nenhum caso da moléstia se sujeitasse à tutela da infortunística, como poderia resultar da aplicação restritiva da MP 927/2020.

A prova de que a contaminação resultou do exercício laboral - em função das elevadas probabilidades - não deve ser exigida do servidor ou do empregado, mas deve resultar da natureza da sua atividade e das circunstâncias nas quais é exercida. Em alguns casos é defensável a formação de presunção, como acentuado pelo Ministro do TST, no artigo já citado:

"Um último ponto importante a ser mencionado é exatamente a Covid-19 para quem se encontra na área de risco, conceito este que não envolve tão somente médicos e enfermeiros, mas o pessoal de limpeza, vigilantes de enfermaria, coveiros, motoristas de ambulância, paramédicos, profissionais de motoambulância, enfim, todo o pessoal que está dentro da zona de contágio, com maior probabilidade de ser infectado.

Para eles, não se pode falar, primeiro, que não é doença endêmica; segundo, que o nexo de causalidade deva ser demonstrado, ao contrário, ele deve ser presumido. Exatamente esse foi o alcance da decisão do STF. Para eles, não é doença cujo nexo de causalidade deva ser comprovado. Ao contrário, ele é presumido. Porque a probabilidade é muito maior de a doença ser adquirida em decorrência do potencial do fator de exposição de risco."

A questão, definitivamente, não pode ser resolvida mediante orientação preconcebida; não se deverá emitir as comunicações de acidente de trabalho para todo e qualquer servidor municipal acometido da COVID.19, como não se poderá negar genericamente a sua emissão.

A pandemia criou uma situação fática que deve ser analisada em função da natureza da atividade e da forma do seu exercício, como já se disse.

Esta análise deve ser feita de maneira circunstanciada pela SMG/COGESS, o que não ocorreu neste processo.

Veja-se, a título de exemplo, os laudos médicos 033433868 e 033433772, que afirmaram a ocorrência de acidente de trabalho, mediante a configuração de nexo causal ficto, caracterizado pelo mero fato de que ocorreu o falecimento de um servidor municipal em decorrência da COVID.19.

Sob este enfoque, o teor do laudo poderia ser reproduzido para todo e qualquer servidor municipal, mesmo que submetido ao regime integral de teletrabalho, sem descolamentos ou plantões, eis que tal fato não foi sequer indagado pela COGESS nem desenvolvido neste processo.

Embora os laudos da medicina de trabalho tenham limites técnicos, alguns elementos sociais importantes para a avaliação, como o uso de equipamentos de proteção e as condições de sanidade laboral devem ser considerados para a configuração do nexo causal.

À Procuradoria Geral do Município (por meio de JUD) caberá, por sua feita, em função dos fatos médicos e dos fatos funcionais apurados, verificar se é possível presumir a causalidade, em função da elevada probabilidade de contágio (servidores de saúde da "linha de frente" de atendimento), para caracterização da doença profissional, ou fatos que, devidamente provados, possam classificar a moléstia como doença do trabalho ou acidente de trabalho por equiparação (contaminação acidental).

Tal é a orientação que se sugere adotar, para este e para os casos análogos, isto é, que a instrução dos pedidos acidentários permita verificar se é possível superar a regra geral negativa da caracterização de doença ocupacional ou de acidente de trabalho quando está presente e é superlativa a contaminação comunitária, segundo o art. 20, § 1°, "d" da Lei Federal 8213/91.

Deverá o presente retornar a JUD, dada a competência para análise dos casos concretos, para
coleta de informações adicionais no que concerne ao nexo causal (laudo médico) e à verificação das atividades exercidas efetivamente pelo servidor unicipal no período do suposto contágio, fatos que poderão afastar ou confirmar a negativa na caracterização da doença ocupacional ou do acidente laboral.

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São Paulo, 17/12/2020.

Celso A. Coccaro Filho

Procurador Municipal - PGM.AJC

OAB n.° 98.071

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De acordo,

São Paulo, 18/12/2020.

Ticiana Nascimento de Souza Salgado

Procuradora Assessora Chefe-AJC

OAB/SP 175.186

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processo n° 6029.2020/0012176-6

ASSUNTO: Acidente do trabalho. Pecúlio decorrente de falecimento causado pela COVID.19. Encaminhamento, com pedido de orientação.

Continuação da Informação n. 1381/2020-PGM.AJC

PGM.G

SENHORA PROCURADORA GERAL:

Encaminho-lhe o parecer da Assessoria Jurídico-Consultiva, que aprovo, em relação às cautelas que devem ser observadas à verificação da COVID.19 como doença ocupacional ou acidente de trabalho equiparado.

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São Paulo, 18/12/2020.

TIAGO ROSSI

COORDENADOR GERAL DO CONSULTIVO

OAB/SP 195.910

PGM

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processo n° 6029.2020/0012176-6

ASSUNTO: Acidente do trabalho. Pecúlio decorrente de falecimento causado pela COVID.19. Encaminhamento, com pedido de orientação.

Continuação da Informação n. 1381/2020-PGM.AJC

JUD.G

Senhor Procurador Chefe

Acolho o parecer da Coordenadoria Geral do Consultivo, tanto no que se refere ao caso concreto, quanto às orientações de caráter genérico traçadas no parecer.

Rogo a adoção das medidas condizentes com o entendimento expressado.

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São Paulo, 18/12/2020.

MARINA MAGRO BERINGHS MARTINEZ

PROCURADORA GERAL DO MUNICÍPIO

OAB/SP 169.314

Este texto não substitui o original publicado no Diário Oficial da Cidade de São Paulo