processo nº 6075.2019/0000120-4
INTERESSADA: SECRETARIA MUNICIPAL DE JUSTIÇA
ASSUNTO: Artigo 83, §§3° a 5° da Lei Orgânica do Município de São Paulo. Lei Complementar federal 64/1990. Interpretação.
Informação n° 0793/2019-PGM.AJC
PROCURADORIA GERAL DO MUNICÍPIO
ASSESSORIA JURÍDICO-CONSULTIVA
Senhor Procurador Assessor Chefe
Trata-se de consulta formulada pela Secretaria Municipal de Justiça "acerca da extensão da interpretação do artigo 83, §3° a 5°, da Lei Orgânica do Município, combinada com a Lei Complementar n° 64/90". Conforme expõe a Pasta, a "questão central coloca-se pelo esclarecimento a respeito de em quais casos o impedimento de ocupação de cargos públicos se aplica e em quais casos não se aplica, em se verificando decisão transitada em julgado ou em órgão judicial colegiado."
É o relatório.
A Lei Orgânica do Município de São Paulo impede o exercício da função pública por pessoas que incidem nas hipóteses de inelegibilidade disciplinadas legalmente. É o que prevê o artigo 83, em seus parágrafos 3° a 7° (cf. acréscimo promovido pela Ementa 35/12), in verbis:
Art. 83. (omissis)
§ 3° - Para fins de preservação da probidade pública e moralidade administrativa, é vedada a admissão e nomeação, para cargo, função ou emprego público, de pessoas que incidam nas hipóteses de inelegibilidade, previstas na legislação federal.
§ 4° - Para fins da aplicação das disposições contidas no § 3° deste artigo, serão observadas as peculiaridades e a forma constitutiva dos órgãos da administração pública indireta.
§ 5° - Os servidores ocupantes de cargos em comissão deverão comprovar, por ocasião da nomeação, que estão em condições de exercício do cargo ou função, nos termos do § 3°, bem como ratificar esta condição anualmente, até 31 de janeiro.
§ 6° - No caso de servidores efetivos e dos empregados públicos, a comprovação das condições de exercício do cargo e função pública, a que se refere o § 3°, será feita no momento da posse ou admissão.
§ 7° - Aplicam-se as disposições previstas nos §§ 3°, 5° e 6° aos órgãos da administração direta e indireta, inclusive à Câmara Municipal e ao Tribunal de Contas do Município.
A legislação federal que trata da inelegibilidade é a Lei Complementar 64/1990, objeto de acréscimo no ano de 2010 pela Lei Complementar 135, conhecida como Lei da Ficha Limpa. Uma de suas hipóteses encontra-se vertida no artigo 1°, inciso I, alínea "l", envolvendo a condenação por improbidade decorrente de decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado. Reproduza-se o dispositivo:
Art. 1° São inelegíveis:
I - para qualquer cargo:
(... )
l) os que forem condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena
Consigne-se desde já que o Supremo Tribunal Federal reconheceu no ano de 2012 a constitucionalidade da Lei Complementar 135/2010, nos termos de Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs 29 e 30) e de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4578)1.
Conquanto o inciso I preveja outras hipóteses associadas a decisões transitadas em julgado ou pronunciadas por órgão judicial colegiado (alíneas "d", "e", "h", "j", "n" e "p"), a análise jurídica ora procedida será voltada aos casos envolvendo improbidade administrativa (alínea "l", acima transcrita). Ademais, para fins da elaboração do presente parecer, baseado em consulta desvinculada de um caso concreto que a tenha motivado, será apontada a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral a respeito, bem assim do Supremo Tribunal e igualmente do Superior Tribunal de Justiça sobre o regime da improbidade administrativa (Lei 8.429/1992).
Inicialmente, convém destacar os requisitos consagrados legalmente, e reconhecidos jurisprudencialmente, para a caracterização da aludida inelegibilidade. São eles, de modo cumulativo:
(i) condenação por ato de improbidade administrativa que importe, simultaneamente, lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito;
(ii) presença do elemento subjetivo doloso;
(iii) decisão judicial definitiva (transitada em julgado) ou proferida por órgão judicial
colegiado;
(iv) aplicação da sanção de suspensão dos direitos políticos.
Verifiquemos cada uma das condições e as respectivas definições jurisprudenciais.
Previamente, porém, convém destacar um inafastável parâmetro interpretativo segundo o qual as regras de inelegibilidade são de interpretação estrita, revelando-se inadmissível o uso de presunções ou de termos genéricos para fins de atrair o óbice eleitoral (REspe n° 13493, Rel. Min. Henrique Neves, DJE de 28/03/2017; REspe n° 34191, Rel. Min. Luciana Lóssio, PSESS de 19/12/2016; AgR-REspe n° 11237, Rel. Min. Henrique Neves da Silva, DJe de 03/04/2017; REspe n° 10788, Rel. Min. Henrique neves da Silva, PSESS de 19/12/2016; RO 494-26, rel. Min. Gilmar Mendes, PSESS de 1°/10/2014).
Trata-se de diretriz hermenêutica aplicável à justiça eleitoral, a qual, a fortiori, merece incidência na interpretação administrativa decorrente da aplicação do artigo 83, §3° a 5°, da Lei Orgânica do Município de São Paulo.
I . SIMULTÂNEA CONDENAÇÃO POR IMPROBIDADE POR LESÃO AO ERÁRIO E ENRIQUECIMENTO ILÍCITO
O entendimento do TSE é firme no sentido de que "é necessária a presença, concomitante, de lesão ao erário e enriquecimento ilícito, em proveito próprio ou de terceiro", para fins de incidência do artigo 1°, inciso I, "l", da LC 64/1990 (REspe n° 49-32/SP, Rel. Min. Luciana Lóssio, j. em 18.10.2016).
Nesse sentido, já decidiu a mesma Corte que a condenação por improbidade administrativa por violação aos princípios da administração pública (p.ex., em uma hipótese envolvendo a prática de nepotismo) não importa inelegibilidade, porquanto necessária a lesão ao patrimônio público e o enriquecimento ilícito (AgR-REspe n° 67-10/AM, Rel. Min. Nancy Andrighi, PSESS de 6/12/2012).
Vale ressaltar que o reconhecimento da prática de enriquecimento ilícito e de lesão ao erário pode ser feito a partir do exame da fundamentação do decisum condenatório, "ainda que tal reconhecimento não tenha constatado expressamente no dispositivo daquele pronunciamento judicial" (AgR-RO 1774-11/MG, Rel. Min. Luiz Fux, PSESS de 11/11/2014; AgR-REspe n° 28596, Rel. Min. Rosa Weber, DJe de 04/04/2017). Verifica-se, portanto, a potencial necessidade de cognição administrativa acerca da decisão judicial condenatória in totum, e não apenas de sua parte dispositiva, para se extrair a simultânea ocorrência de dano ao erário e de locupletamento ilícito.
É preciso ressaltar um aspecto juridicamente sensível, mas que, à luz do entendimento do TSE, encontra uma consolidação jurisprudencial. Imagine-se a hipótese em que determinado agente seja condenado por improbidade administrativa em razão de lesão ao erário decorrente da figura típica prevista no artigo 10, inciso XII, da Lei 8.429/92: "permitir, facilitar ou concorrer para que terceiro se enriqueça ilicitamente" (destaque nosso). Neste caso, embora a tipificação tenha se dado com base exclusivamente no prejuízo ao erário, a ocorrência de um enriquecimento ilícito (de terceiro) faz incidir a hipótese de inelegibilidade em relação ao agente ímprobo. Foi o que já decidiu o TSE no âmbito do REspe 28596/PR, Rel. Min. Rosa Weber, DJe 04/04/2017121.
Tais parâmetros interpretativos merecem ser replicados pela Administração municipal.
II. ELEMENTO SUBJETIVO DOLOSO
A caracterização do elemento subjetivo doloso deve ser compatibilizada com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que: "É inadmissível a responsabilidade objetiva na aplicação da Lei n. 8.429/1992, exigindo-se a presença de dolo nos casos dos arts. 9° e 11 (que coíbem o enriquecimento ilícito e o atentado aos princípios administrativos, respectivamente) e ao menos de culpa nos termos do art. 10, que censura os atos de improbidade por dano ao Erário."
Nesse sentido, na hipótese de improbidade administrativa que importa enriquecimento ilícito (artigo 9°), representa condição implícita para a sua caracterização a caracterização do dolo. Por sua vez, na modalidade de lesão ao erário (artigo 10), admite-se tanto o elemento subjetivo doloso ou culposo.
Diante desta premissa, e por razões de ordem lógica, a condenação por improbidade tipificada com assento no artigo 9° dispensa uma referência expressa ao dolo, já que se trata de requisito para a sua caracterização. Trata-se de entendimento abraçado pelo TSE, conforme a decisão extraída do REspe 7239/SP, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 19/12/201713. No mesmo sentido: AgR-RO 384-27/RR, Rel. Min. Luciana Lóssio, PSESS de 24/10/201414.
Por outro lado, caso o ato ímprobo seja embasado na figura do artigo 10, imprescindível extrair-se da decisão judicial condenatória - notadamente na fundamentação - o elemento subjetivo correlato. Se o dolo, caracterizada estará a inelegibilidade. Se a culpa, afastada a sua incidência.
III. DECISÃO JUDICIAL TRANSITADA EM JULGADO OU PROFERIDA POR ÓRGÃO JUDICIAL
COLEGIADO
Outra condição para a caracterização da inelegibilidade é o pronunciamento de decisão judicial de caráter definitivo (transitada em julgado) ou proferido por órgão judicial colegiado (ou seja, sem a formação de coisa julgada). O Supremo Tribunal Federal reconheceu a possibilidade de caracterização da inelegibilidade sem o trânsito em julgado da decisão condenatória, situação que não infringe a postulado da presunção de inocência.
Demais, o TSE conta com julgados no sentido de que a decisão de órgão judicial colegiado, mesmo que não aborde o mérito, é apta a atrair a incidência da inelegibilidade do artigo 1°, inciso I, alínea "l", da LC 64/19905. Embora haja decisões em sentido contrário6, alguns julgados do próprio TSE apontam o seu desacerto. Reproduza-se o respectivo trecho:
"Não se olvida a existência de precedente desta Corte, segundo o qual apenas a decisão meritória, proferida por órgão judicial colegiado, seria apta a atrair a incidência da debatida causa de inelegibilidade.
No entanto, tal compreensão, além de não encontrar amparo no texto da lei, esvaziaria a eficácia da norma. Afinal, bastaria que o agente ímprobo apresentasse recursos manifestamente intempestivos para que conseguisse, a um só tempo, evitar a certificação do trânsito em julgado e impedir a manifestação de mérito por parte do órgão judicial colegiado, o que postergaria o reconhecimento de sua inelegibilidade e, talvez até, permitiria a sua investidura no cargo eletivo.
Adotando-se tal entendimento, a Justiça Eleitoral submeteria a certificação da causa de inelegibilidade ao exclusivo critério do agente ímprobo, o que, por óbvio, não pode ser admitido pelo ordenamento jurídico.
Logo, é preciso reconhecer que o trânsito em julgado ou a manifestação de órgão judicial colegiado - qualquer que seja ela - são elementos aptos a, isoladamente, atrair a incidência da inelegibilidade da alínea l. Dessa forma, a Justiça Eleitoral, ao tempo em que protege o candidato contra decisões monocráticas teratológicas, impõe limites à postergação indefinida da incidência da inelegibilidade, em atendimento aos anseios do legislador reformador de 2010, que instituiu a chamada Lei da Ficha Limpa (LC n° 135/2010)."
Trata-se, com efeito, da melhor cognição sobre o regime da inelegibilidade.
IV. PENA DE SUSPENSÃO DOS DIREITOS POLÍTICOS
O último requisito consiste na necessária condenação à pena de suspensão dos direitos políticos, que detém interface com a própria condição de inelegibilidade.
Relevante consignar que a cominação da pena de suspensão dos direitos políticos não é necessária, nos termos do artigo 12 da Lei 8.429/19927 e do próprio entendimento do Superior Tribunal de Justiça, que adota orientação segundo a qual é cabível a aplicação isolada ou cumulativa das sanções previstas no art. 12 da Lei n. 8.429/92, desde que sejam obedecidos os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade8. Diante disso, imprescindível que o dispositivo do decisum expressamente comine indigitada pena.
V. INTERREGNO TEMPORAL DA INELEGIBILIDADE
Além das condições para a configuração da inelegibilidade, convém verificar o respectivo prazo eficacial. Nos termos do artigo 1°, inciso I, alínea "l", in fine, da LC 64/1990, dois são os marcos temporais.
O termo a quo consiste na "condenação ou trânsito em julgado", ou seja, no pronunciamento de decisão judicial de caráter definitivo (transitada em julgado) ou proferido por órgão judicial colegiado (sem a formação de coisa julgada). Já o termo ad quem assume relação com o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena.
Verifica-se, portanto, que o termo final encontra-se na estreita dependência do cumprimento da pena, a partir do qual, e só então, conta-se o prazo de 8 (oito) anos. Relevante consignar, de acordo com a jurisprudência do TSE, que vem se emprestando um sentido lato ao momento do "cumprimento da pena", o que inclui o ressarcimento ao erário.
É o que se extrai da decisão abaixo9, in verbis:
Para efeito da aferição do término da inelegibilidade prevista na parte final da alínea l do inciso I do art. 1° da LC n° 64/90, o cumprimento da pena deve ser compreendido não apenas a partir do exaurimento da suspensão dos direitos políticos e do ressarcimento ao erário, mas a partir do instante em que todas as cominações impostas no titulo condenatório tenham sido completamente adimplidas, inclusive no que tange à eventual perda de bens, perda da função pública, pagamento da multa civil ou suspensão do direito de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente.
Neste ponto, deve-se reconhecer uma certa incongruência jurisprudencial do TSE, que, de um lado, prega a interpretação restritiva para as hipótese de inelegibilidade, e, de outro, confere um elastério à condição normativa referente ao cumprimento da pena10. A despeito disso, a jurisprudência do TSE merece ser acompanhada e servir como parâmetro interpretativo decorrente da aplicação do artigo 83, §3° a 5°, da Lei Orgânica do Município de São Paulo.
VI. CONCLUSÃO
Diante de todo o exposto, consolidem-se os requisitos para configuração da inelegibilidade prevista no artigo 1°, inciso I, alínea "l", da LC 64/1990:
(i) condenação por ato de improbidade administrativa que importe, simultaneamente, lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito;
(ii) presença do elemento subjetivo doloso;
(iii) decisão judicial definitiva (transitada em julgado) ou proferida por órgão judicial
colegiado;
(iv) aplicação da sanção de suspensão dos direitos políticos;
Em relação a cada qual, merece prevalecer, para fins de aplicação do artigo 83, §§ 3° a 5°, da Lei Orgânica do Município de São Paulo, a jurisprudência dos Tribunais Superiores, nomeadamente do Tribunal Superior Eleitoral.
Por óbvio, as orientações ora traçadas, com assento na jurisprudência descrita, não são exaustivas, de modo a não afastar a ocorrência de outras situações que exijam uma avaliação casuística. Na medida em que a consulta formulada pela Secretaria Municipal de Justiça assumiu caráter geral, divorciado de uma dúvida jurídica pontual ou de um caso concreto, cabível a ocorrência de circunstâncias fáticas inéditas, não subsumíveis a qualquer entendimento consolidado.
À consideração superior.
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São Paulo, 6/06/2019.
RODRIGO BORDALO RODRIGUES
PROCURADOR DO MUNICÍPIO ASSESSOR
OAB/SP n° 183.508
PGM/AJC
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De acordo.
TICIANA NASCIMENTO DE SOUZA SALGADO
PROCURADORA ASSESSORA CHEFE
OAB/SP 175.186
PGM/AJC
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processo nº 6075.2019/0000120-4
INTERESSADA: SECRETARIA MUNICIPAL DE JUSTIÇA
ASSUNTO: Artigo 83, §§3º a 5º da Lei Orgânica do Município de São Paulo. Lei complementar federal 64/90. Interpretação.
Cont. da Informação n° 0793/2019-PGM.AJC
PROCURADORIA GERAL DO MUNICÍPIO
Senhor Procurador Geral
Encaminho o presente com a manifestação da Assessoria Jurídico-Consultiva desta Coordenadoria Geral do Consultivo, que acompanho integralmente.
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São Paulo
TIAGO ROSSI
COORDENADOR GERAL DO CONSULTIVO
OAB/SP 195.910
PGM
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processo nº 6075.2019/0000120-4
INTERESSADA: SECRETARIA MUNICIPAL DE JUSTIÇA
ASSUNTO: Artigo 83, §§3º a 5º da Lei Orgânica do Município de São Paulo. Lei complementar federal 64/90. Interpretação.
Cont. da Informação nº 0793/2019-PGM.AJC
SECRETARIA MUNICIPAL DE JUSTIÇA
Senhor Secretário
Encaminha-se o presente expediente com a manifestação da Coordenadoria Geral do Consultivo, que acolho na íntegra.
Saliente-se que as orientações jurídicas traçadas não são exaustivas, de modo a não afastar a ocorrência de outras situações que exijam uma avaliação casuística. Na medida em que a consulta formulada por essa Pasta assumiu caráter geral, divorciado de uma dúvida jurídica pontual ou de um caso concreto, cabível a ocorrência de circunstâncias fáticas inéditas, não subsumíveis a qualquer entendimento consolidado no âmbito dos Tribunais Superiores.
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São Paulo, 12/09/2019.
GUILHERME BUENO DE CAMARGO
PROCURADOR GERAL DO MUNICÍPIO
OAB/SP 188.975
Este texto não substitui o original publicado no Diário Oficial da Cidade de São Paulo