Processo n° 6010.2018/0001051-7
Informação n° 1045/2018-PGM.CGC.AJC
PROCURADORIA GERAL DO MUNICÍPIO
COORDENADORIA GERAL DO CONSULTIVO
Senhor Coordenador,
A Assessoria Técnico-Legislativa da Secretaria do Governo Municipal (SGM), a pedido da Comissão de Constituição, Justiça e Legislação Participativa da Câmara, solicita pronunciamento desta Procuradoria Geral do Município (PGM), em caráter de urgência, sobre a viabilidade jurídica do conteúdo do projeto de lei n° 144/2018, de autoria legislativa, que dispõe sobre transação tributária, nas hipóteses que especifica, altera a legislação tributária e dá outras providências.
A propositura municipal reproduz integralmente o conteúdo do Projeto de Lei n° 5089/2009 de autoria do Poder Executivo federal que, dispondo sobre a "lei geral de transação em matéria tributária", tem o propósito de regulamentar, passados cinquenta anos os artigos 156, III e IV, e 171 e 172 do Código Tributário Nacional (escapou aos autores da propositura a adaptação à realidade local do inc. III do §3° do art. 23 e do inciso I do art. 43). As dificuldades do tema são óbvias, o que talvez explique a lenta tramitação do projeto na Câmara dos Deputados1. Dado que parte expressiva do projeto municipal toca em temas de nítida competência federal - como os atinentes à prescrição, recuperação judicial, falência, insolvência civil, recuperação tributária, certidões fiscais, processo civil etc. -, convém que o Município cogite regulamentar a transação de seus créditos tributários somente depois da eventual aprovação da lei nacional. Mais ainda: conforme expresso na própria fundamentação técnica do anteprojeto que redundou no PL 5089/2009, a futura implementação de uma Lei Geral está a depender de medidas veiculadas por meio de alteração de Lei Complementar; transcrevo:
"O anteprojeto vem no bojo de um conjunto de medidas destinadas à modernização da Administração Fiscal, para tornar a sua atuação mais transparente, célere, desburocratizada e eficiente. As outras medidas que caminham no mesmo sentido consistem na edição de outras duas leis ordinárias (uma referente aos mecanismos de cobrança dos créditos inscritos na dívida ativa da União e a outra, à execução fiscal administrativa) e uma lei complementar (alteração do Código Tributário Nacional), essa última indissociável do presente anteprojeto, visto que alguns de seus efeitos dependem das alterações naquela lei propostas (como os que tratam da interrupção da prescrição, das causas de suspensão da exigibilidade do crédito tributário e da prova da regularidade fiscal)." (destacamos)
Ora, o CTN não foi adaptado de modo a dotar a transação tributária municipal dos efeitos que constituiriam sua linha mestra - muito especialmente os mecanismos de suspensão e interrupção da prescrição, essenciais à preservação do crédito durante a tramitação administrativa das propostas de transação (artigos 13, 14, 20, 30 etc).
Depreende-se do trecho a seguir reproduzido do recente parecer PGFN/CAT 42/2018 a ausência de perspectiva imediata de aprovação no Congresso da normas que dariam algum repaldo à legislação municipal:
"Em outras palavras, no âmbito tributário, a mediação depende da regulamentação do instituto da transação, forma de extinção do crédito tributário prevista no artigo 156, do Código Tributário Nacional, que somente pode ser aplicada após positivada por meio de lei específica que preveja critérios e parâmetros, dentro dos quais possa haver 'concessões recíprocas', as quais, em matéria tributária, apenas serão legitimamente implementáveis para solução de conflito concreto se estiverem prévia e abstratamente previstas em lei. A regulamentação, por lei em sentido estrito, do instituto da transação é condição imposta pela norma geral tributária (art. 171 do CTN) para a flexibilização da indisponibilidade do crédito público (art. 156 do CTN), em homenagem ao princípio da não tributação sem representação, do princípio da legalidade (art. 146 da CF). Além do aspecto material, a lei de transação deverá tratar de regras procedimentais, na medida em que impliquem ameaça de extinção do crédito. Refiro-me ao tempo de processo de transação e sua relação com a suspensão e interrupção de exigibilidade do crédito tributário, à fluência do prazo prescricional, dada sua força extintiva do crédito tributário. Todas essas implicações, em âmbito tributário, devem respeitar as normas gerais tributárias, em vista da potencialidade para fulminar o crédito, protegido pelos artigos 146 e 150 da CF." (destacamos)
Essa razão isolada já desautoriza fortemente a conversão da propositura em lei. Mas não é só.
Além desses limites materiais impostos ao legislador municipal pela Constituição, o projeto peca por vício de iniciativa ao se dedicar em grande medida à organização administrativa de repartições públicas, descendo à minúcia de detalhar a tramitação interna da proposta de transação, estabelecendo forma, fluxo, e criando órgãos e competências para sua apreciação (as transações seriam presididas por "Câmara-Geral de Transação e Conciliação - GTC" e "Câmaras de Transação e Conciliação - CTC" vinculadas à PGM)2. O projeto incorre no mesmo vício de iniciativa em virtude da evidente intromissão orçamentária dos benefícios nele contidos, qual seja, redução de "multas, de mora e de ofício, juros de mora, encargos de sucumbência e demais encargos de natureza pecuniária, bem como valores oferecidos em garantia (...)" (art. 6°); não se trata, note-se, de norma tributária, em que se admite a iniciativa concorrente, mas exclusivamente da redução do crédito municipal devidamente constituído e refletido em orçamento, desfalcando sua execução. Nos termos do art. 37, §2°, IV, da LOM, são de iniciativa privativa do Prefeito as leis que disponham sobre "organização administrativa e matéria orçamentária".
Afora tais óbices, há outros que, pontuais, também convém sintetizar.
O projeto, em verdade, diz antes respeito aos institutos de remissão e de anistia do que ao de transação, uma vez que, diferentemente do disposto no art. 171 do CTN3, não há reciprocidade nas concessões: apenas a Fazenda Municipal estaria a abrir mão da integralidade dos encargos tributários legalmente impostos ao devedor. Nesse passo, o estabelecimento permanente de mecanismo administrativo de redução de sanções decorrentes da inadimplência tributária equivaleria a retirar do Legislativo a atribuição de conceder remissão ou anistia tributária, violando o princípio da especificidade legal previsto no artigo 150, §6°, da Constituição4 e nos artigos 1725 e 180 a 1826 do CTN e, destarte, o princípio constitucional da separação de poderes.
O projeto afirma, em seu art. 7°, que a transação não poderá "implicar negociação do montante do tributo devido". Tal asserção é contraditória com a possibilidade, prevista nos §1° e 2° do art. 7° e no art. 30, caput, §3°, do projeto, de a Administração admitir a negociação do crédito — rectius, reduzi-lo — por força de interpretação de conceitos jurídicos indeterminados ou quando julgar relevante a matéria de fato, "inclusive mediante a consideração de elementos não constantes no processo judicial" ou quando avaliar a transação sob o influxo de "matérias pertinentes àquelas deduzidas em juízo e com esta relacionadas ou conexas". Como todo conceito jurídico tem margem de interpretação, e como não haveria preclusão para o contribuinte inovar a apresentação de matéria de fato ou agitar perante às Câmaras de transação novos fundamentos de sua pretensão (relacionados ou conexos à matéria deduzida em juízo), o montante do tributo devido estaria permanentemente sujeit a ser reduzido administrativamente, à margem de pronunciamento do Poder Judiciário (cuja análise, aliás, está restrita aos elementos constantes no processo judicial).
Prevê o artigo 14 do projeto que "com a revogação ou anulação da transação, o crédito tributário será exigido no seu valor originário, descontando-se o montante pago no período, prosseguindo-se na cobrança". A retomada do crédito integral, contudo, resvalaria na impossibilidade de a Fazenda voltar atrás em pronunciamento que, formalmente expedido, implicara a redução do montante do tributo ou por ter admitido nova interpretação a conceito jurídico ou por ter considerado válido elementos materiais e de fato que não constavam da demanda judicial de que o tributo seria objeto. Uma vez reconhecido pelo Poder Público suposto erro que conduzira à exacerbação do tributo, a transação realizada sob tal pressuposto será irreversível, ainda que o contribuinte não honre o pagamento do valor transacionado, fragilizando sobremaneira a higidez do crédito municipal.
O Município, como acima visto, não tem aptidão para estabelecer as hipóteses de suspensão e interrupção de prescrição tributária, como o faz o projeto. Tampouco a tem para disciplinar institutos de direito civil (v.g., insolvência civil, falência ou recuperação judicial) ou para criar, à margem dos demais entes federativos, a transação por recuperação tributária (artigos 35 e seguintes) ou a transação administrativa por adesão (artigos 43 e seguintes).
Cabe, por fim, ponderar que o Município de São Paulo — com a observância dos limites impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal —prestigia a composição de conflitos tributários ao instituir o Conselho Municipal de Tributos, composto por representantes da sociedade civil, aprovar programas de parcelamento incentivado, autorizar o parcelamento administrativo de créditos tributários, promover remissões e anistias, permitir dação em pagamento (Lei 13.259/2001) etc; não se lhe pode imputar a pecha da intransigência com o contribuinte.
Posto isso, sugerimos o veto integral ao Projeto de Lei n° 144/2018 na hipótese de sua aprovação pela Câmara.
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São Paulo, 05/09/2018.
ANTONIO MIGUEL AITH NETO
Procurador Assessor - AJC
OAB/SP n° 88.619
PGM
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De acordo.
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São Paulo, 05/09/2018.
TICIANA NASCIMENTO DE SOUZA SALGADO
PROCURADORA ASSESSORA CHEFE - AJC
OAB/SP 175.186
PGM
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1 O princípio da indisponibilidade dos bens públicos impõe seja necessária previsão normativa para que a autoridade competente possa entrar no regime de concessões mútuas, que é da essência da transação" (Paulo de Barros Carvalho, in Curso de Direito Tributário, 16ª ed., Ed. Saraiva, São Paulo, 2004, pág. 461). "Os sujeitos do vínculo concertam abrir mão de parcelas de seus direitos, chegando a um denominador comum, teoricamente interessante para as duas partes, e que propicia o desaparecimento simultâneo do direito subjetivo e do dever jurídico correlato. Mas, é curioso verificar que a extinção da obrigação, quando ocorre a figura transacional, não se dá, propriamente, por força das concessões recíprocas, e sim do pagamento. O processo de transação tão-somente prepara o caminho para que o sujeito passivo quite sua dívida, promovendo o desaparecimento do vínculo. Tão singela meditação já compromete o instituto como forma extintiva de obrigações. Ao contrário do que sucede no direito civil, em que a transação tanto previne como termina o litígio, nos quadrantes do direito tributário só se admite a transação terminativa. Há de existir litígio para que as partes, compondo seus mútuos interesses, transijam. Agora, divergem os autores a propósito das proporções semânticas do vocábulo litígio. Querem alguns que se trate de conflito de interesses deduzido judicialmente, ao passo que outros estendem a acepção a ponto de abranger as controvérsias meramente administrativas. Em tese, concordamos com a segunda alternativa. O legislador do Código não primou pela rigorosa observância das expressões técnicas, e não vemos porque o entendimento mais largo viria em detrimento do instituto ou da racionalidade do sistema. O diploma legal permissivo da transação trará, certamente, o esclarecimento desejado, indicando a autoridade ou as autoridades credenciadas a celebrá-la.Deveras, o instituto da transação tributária, assim como a compensação e a remissão (artigo 156, do CTN), submete-se ao subprincípio da reserva da lei tributária (artigo 97, do CTN), consectário do princípio da legalidade, que decorre do valor supraconstitucional da segurança jurídica" (Paulo de Barros Carvalho, in ob. cit., págs. 461/462).
2 "AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Lei n° 14.118, de 22-12-2017, de origem parlamentar, que 'dispõe sobre a gestão participativa das praças do Município de Ribeirão Preto, e dá outras providências' - Inconstitucionalidade - Ocorrência. Vício de iniciativa - Programa governamental - Gestão de bens públicos - Competência do Executivo - A matéria regulamentada pela norma impugnada insere-se no âmbito da competência legislativa atribuída pela Constituição ao Chefe do Poder Executivo Municipal, por ser inerente ao planejamento e organização do Município - Violação aos arts. 5°, 47, II, XIV e XIX, 'a', aplicáveis aos Municípios por força do art. 144, todos da CE/89 - Inconstitucionalidade reconhecida - Ação procedente." (TJSP; Direta de Inconstitucionalidade 2017927-18.2018.8.26.0000; Relator (a): Carlos Bueno; Órgão Julgador: Órgão Especial; Tribunal de Justiça de São Paulo - N/A; Data do Julgamento: 08/08/2018; Data de Registro: 16/08/2018, destacamos)
3 Art. 171. A lei pode facultar, nas condições que estabeleça, aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária celebrar transação que, mediante concessões mútuas, importe em determinação de litígio e conseqüente extinção de crédito tributário. Parágrafo único. A lei indicará a autoridade competente para autorizar a transação em cada caso.
4 Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios. (...)§ 6° Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2.°, XII, g.
5 Art. 172. A lei pode autorizar a autoridade administrativa a conceder, por despacho fundamentado, remissão total ou parcial do crédito tributário, atendendo: I - à situação econômica do sujeito passivo; II - ao erro ou ignorância excusáveis do sujeito passivo, quanto a matéria de fato; III - à diminuta importância do crédito tributário; IV - a considerações de eqüidade, em relação com as características pessoais ou materiais do caso; V - a condições peculiares a determinada região do território da entidade tributante. Parágrafo único. O despacho referido neste artigo não gera direito adquirido, aplicando-se, quando cabível, o disposto no artigo 155.
6 Art. 180. A anistia abrange exclusivamente as infrações cometidas anteriormente à vigência da lei que a concede, não se aplicando: I - aos atos qualificados em lei como crimes ou contravenções e aos que, mesmo sem essa qualificação, sejam praticados com dolo, fraude ou simulação pelo sujeito passivo ou por terceiro em benefício daquele; II - salvo disposição em contrário, às infrações resultantes de conluio entre duas ou mais pessoas naturais ou jurídicas. Art. 181. A anistia pode ser concedida: I - em caráter geral; II -limitadamente: a) às infrações da legislação relativa a determinado tributo; b) às infrações punidas com penalidades pecuniárias até determinado montante, conjugadas ou não com penalidades de outra natureza; c) a determinada região do território da entidade tributante, em função de condições a ela peculiares; d) sob condição do pagamento de tributo no prazo fixado pela lei que a conceder, ou cuja fixação seja atribuída pela mesma lei à autoridade administrativa. Art. 182. A anistia, quando não concedida em caráter geral, é efetivada, em cada caso, por despacho da autoridade administrativa, em requerimento com a qual o interessado faça prova do preenchimento das condições e do cumprimento dos requisitos previstos em lei para sua concessão. Parágrafo único. O despacho referido neste artigo não gera direito adquirido, aplicando-se, quando cabível, o disposto no artigo 155.
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Processo n° 6010.2018/0001051-7
Informação em continuação n° 1045/2018-PGM.CGC.AJC
PROCURADOR GERAL DO MUNICÍPIO
Senhor Procurador,
Encaminho o presente com a manifestação da Assessoria Jurídico-Consultivo desta Coordenadoria Geral do Consultivo, que acolho.
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São Paulo, 10/09/2018.
TIAGO ROSSI
COORDENADOR GERAL DO CONSULTIVO
OAB/SP 195.910
CGC.G
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Processo n° 6010.2018/0001051-7
Informação em continuação n° 1045/2018-PGM.CGC.AJC
CASA CIVIL
Sr. Secretário
Em atendimento ao pedido inaugural, encaminho o presente em devolução com o parecer de Ementa n° 11.888 da Coordenadoria Geral do Consultivo desta Procuradoria Geral do Município, que acolho, o qual opina pelo veto integral pelo Sr. Prefeito ao Projeto de Lei n° 144/2018 na eventual hipótese de aprovação pela Câmara Municipal.
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São Paulo, 11/09/2018.
GUILHERME BUENO DE CAMARGO
PROCURADOR GERAL DO MUNICÍPIO
OAB/SP 188.975
PGM
Este texto não substitui o original publicado no Diário Oficial da Cidade de São Paulo