TID n° 15290573 (memorando n° 310/2016-ATL-lll)
INTERESSADO: Assessoria Técnico-Legislativa
ASSUNTO: Projeto de Lei n° 476/2015
Informação n° 806/2016-PGM.AJC
PROCURADORIA GERAL DO MUNICÍPIO
ASSESSORIA JURÍDICO-CONSULTIVA
Senhor Procurador Assessor Chefe
1- Trata-se do projeto de lei n° 476/15 de autoria dos vereadores Eliseu Gabriel, José Police Neto, Juliana Cardoso, Natalini, Patrícia Bezerra, Ricardo Young e Toninho Vespoli que "regulamenta o art. 10 da Lei Orgânica do Município (LOM) e dá outras providências"1.
O projeto, em seu art. 1°, determina que, previamente à "discussão e aprovação de obras de valor elevado ou que tenham significativo impacto ambiental, deve-se propor e convocar plebiscito". Estabelece, ainda, que a proposição e a convocação do plebiscito observarão o disposto no art. 45, "caput", e §§1° e 2o do artigo 44 da LOM2, assim definindo, em seu art. 3o, as intervenções urbanas que se submeteriam a tal escrutínio:
Art. 3o Para os fins desta lei, considera-se:
I - obra de valor elevado toda e qualquer obra pública cujo valor esteja fora do valor médio, na casa de dois desvios padrão acima da média, das obras previstas para o exercício financeiro vigente à época do pedido de plebiscito;
II - obra de significativo impacto social e ambiental toda e qualquer obra, pública ou privada, que implique em transformação acelerada do perfil urbanístico do Município, distrito ou bairro, em suas características de uso e ocupação do solo ou seu padrão de circulação, bem como as que se destinem a implantar atividades que representem ameaça à segurança do entorno.
2 - Pois bem. Conforme já apontado em manifestação anterior desta AJC (Ementa n° 10.771), o Município reúne competência para legislar sobre plebiscito, como estabelecido, aliás, em legislação federal (art. da Lei n° 9.709/983). A propositura, contudo, além de não observar, como deveria, as limitações constitucionais e as da própria Lei Orgânica a que se sujeita, padece de deficiência técnica que, por si só, recomenda seu veto.
3 - Tal como expressa, ela erige o plebiscito como requisito formal para a "discussão e aprovação" de um larguíssimo espectro de obras. A disposição do art. 1° é, de fato, imperativa: "deve-se propor e convocar plebiscito" sempre que, no Município, cogitar-se a realização de obras, públicas ou privadas, enquadráveis na generalidade de seu art. 3o. Estariam expostas à consulta prévia desde a construção de estações de metrô (a lei não distingue o ente responsável pela obra pública), a de corredores de ônibus ou ciclovias, e até a de prédio em que se pretenda instalar atividade comercial que possa afetar "as características de uso e ocupação do solo" ou o "padrão de circulação" (seja lá o que isso for) de algum específico bairro.
4 - A banalização do plebiscito, porém, conspira contra o espírito que deve orientar essa modalidade de consulta popular. Plebiscitos são instrumento idôneos para definição de forma ou sistema de governo (art. 2o do ADCT), divisão ou formação de novos Estados (art. 18, §3°, da CR), desmembramento de Municípios (art. 18, §4°, da CR), assuntos, como se vê, de invulgar dimensão. Como expresso no art. 2o da Lei 9.709/98, a deliberação popular deverá ter por objeto "matéria de acentuada relevância, de natureza constitucional, legislativa ou administrativa".
A cidade não deve ser constantemente chamada a opinar sobre tema que, por mais nobre que seja, circunscreva-se a interesse específico de reduzida porção do território. É indiscutível, por exemplo, a transcendência do destino urbanístico do Elevado Costa e Silva, que secciona a metrópole, mas não a construção de um prédio em determinado bairro consoante parâmetros edilícios já estabelecidos em legislação municipal. O projeto, sob esse prisma, obrigaria à instauração de mecanismo permanente de consulta popular para viabilizar a gestão corriqueira da cidade, atribuição exclusiva do Executivo, ferindo, assim, o princípio constitucional da eficiência a que se submetem os negócios públicos; tais demasias implicam, ao ver de abalizada doutrina, ofensa mesma ao princípio da separação dos poderes4:
"(...) No entanto, nem toda matéria poderá ser levada à consulta plebiscitária (e ao referendo), mesmo que seja reconhecidamente de acentuada relevância. A razão é bastante simples como o plebiscito e o referendo são convocáveis pelo legislativo nacional (art. 49, XV, da C.F.), — por proposta de um terço no mínimo dos membros que compõem qualquer das Casas do Congresso Nacional (art. 3.° da Lei n.° 9.709/98) — e no caso dos Estados e Municípios na forma do que dispuser a Constituição Estadual e a Lei Orgânica do Município — não me parece lógico que nas matérias de exclusiva iniciativa do Poder Judiciário ou do Presidente da República ou mesmo da competência privativa do Congresso nacional, quando não for possível a 'delegação de competência' , tenha-se a convocação do plebiscito ou referendo, que se representa, nos moldes traçados pela Lei 9.709/98, como uma abdicação de competência do Poder Legislativo. Não se pode abdicar daquilo que não se possui. De outra parte poder-se-á argumentar que não se estará abdicando da competência, mas apenas criando os meios necessários para que o legítimo titular do poder de sufrágio possa exercê-lo, sem intermediários, qual seja: o povo.
Essa interpretação não se apresenta compatível com o Estado de Direito pois transfere a apenas um poder — o Legislativo — a faculdade de convocar a ouvida do povo nas questões que lhe pareçam mais relevantes, mesmo quando se trate de matéria submetida à iniciativa privativa de um dos poderes." (Flávio Roberto Ferreira Lima, in "Manifestação popular e os limites materiais à convocação do plebiscito e referendo: uma análise da Lei 9.709/98", página 9, grifamos)
5 - Não bastasse esse suficiente motivo para sugestão de veto, é certo que a insensatez na conceituação de "obras de valor elevado ou de significativo impacto ambiental" aconselha igual desfecho. A lei referida no art. 10 da LOM deveria se limitar a descrever o procedimento para submissão à Câmara de iniciativa de plebiscito, traçando em linhas necessariamente gerais a matéria passível de consulta popular.
Caberia ao Legislativo, a cada iniciativa de plebiscito validamente apresentada, ponderar a relevância do tema proposto. O projeto, contudo, inverte essa lógica, predefinindo em desarrazoada amplitude que "obras de valor elevado ou de significativo impacto ambiental" serão qualquer obra, pública ou privada, que reúna as tênues condições arroladas no art. 3o, impondo a realização de prévia consulta plebiscitária para que se lhes conceda a correspondente autorização. Retirou-se o espaço para que a Câmara, na tramitação de proposta de plebiscito, eventualmente conclua pela irrelevância do tema apreciado.
6 - O inciso I do art. 3o da propositura também revela a conveniência do veto. Além de demandar regulamento que o explique — ou seja, a norma regulamentar está paradoxalmente a exigir regulamentação —, sua aplicação estará atrelada a operação matemática para apurar, em relação a obra pública, o "valor médio, na casa de dois desvios padrão acima da média, das obras previstas para o exercício financeiro vigente à época do pedido de plebiscito". A complexidade do raciocínio já desaconselha a fórmula.
Ademais, não é razoável que a relevância da matéria submetida a plebiscito seja definida a partir de contingências orçamentárias ou financeiras locais. O valor médio referido no projeto oscilará em determinado exercício de acordo com o planejamento municipal, com a característica das intervenções planejadas, com a capacidade de investimento que então se verifique, com um sem número, enfim, de circunstâncias absolutamente dissociadas da importância intrínseca da obra pública cuja oportunidade e conveniência será apreciada pela população. Toda obra pública é reflexo direto de leis orçamentárias previamente discutidas e aprovadas (plano plurianual, lei orçamentária anual, lei de diretrizes orçamentárias), incumbindo à Administração executá-las com fidelidade; não é possível condicionar a plebiscito a aplicação imperativa de legislação dessa natureza.
7 - O inciso II do art, 3o padece de imperfeição técnica igualmente grave. A legislação municipal vigente orienta a realização de empreendimentos privados, cabendo à Administração aplicá-la de modo impessoal. O projeto sugere que, independentemente da regularidade formal da obra particular, deverá ela, consoante dicção do art. 1° do projeto, obter o beneplácito popular na larguíssima hipótese de implicar "transformação acelerada do perfil urbanístico do Município, distrito ou bairro, em suas características de uso e ocupação do solo ou seu padrão de circulação, bem como as que se destinem a implantar atividades que representem ameaça à segurança do entorno". Ora, a negativa plebiscitária a obra particular projetada em absoluta conformidade com a legislação municipal em vigor, inclusive no que tange a impactos ambientais e de vizinhança, significará restrição a direito adquirido (art. 5o, inc. XXXVI da CR) e à propriedade (art. 5o, XXII, da CR), à feição de desapropriação ou tombamento, acarretando o correspondente dever de o Município indenizá-la. O projeto não avalia o significativo impacto da proposta no erário municipal.
8 - O projeto de lei exige que seja submetida a plebiscito obra, pública ou privada, que limitadamente afete distrito ou bairro. Nessa hipótese — que, por definição, amesquinha a dignidade do instituto —, não é razoável proceder à onerosa convocação de todos os eleitores do Município para votar matéria alheia à sua percepção ou interesse direto.
9 - O projeto, ao pegar de empréstimo os procedimentos previstos nos artigos 44, §§ 1° e 2°, e 45 da LOM, incluiu a possibilidade de o plebiscito ser impulsionado por iniciativa popular. O art. 10 da LOM, contudo, é expresso ao afirmar que o plebiscito nele previsto será proposto tão-só por iniciativa do Legislativo ou do Executivo. A inclusão da iniciativa popular para tal fim exigiria alteração prévia do próprio art. 10 da Lei Orgânica, por meio de emenda votada na forma de seu art. 36, o que não ocorreu.
10 - Considerando a gravidade do assunto, caberia à Câmara tratá-lo com a prudência e o cuidado que não se verificam na propositura, dedicada a sobretudo elastecer para alem do razoavel o conceito de obras de valor elevado ou de significativo impacto ambiental. A complexidade e multiplicidade das questões técnicas e jurídicas objeto de eventual consulta plebiscitária fundamentada no referido artigo 10 obrigariam à reflexão legislativa muito mais aprofundada, de modo, por exemplo, a contornar, mutatis mutandi, preocupações externadas à época do plebiscito que definiu nossa forma e sistema de governo por Fabio Konder Comparato (autor de anteprojeto que inspirou o PL 2.115/2015, que, em tramitação na Câmara dos Deputados, pretende alterar a Lei 9.709/98):
"Por tudo o que se vem de dizer, parece ocioso ressaltar a lamentável inépcia da formulação normativa contida na disposição constitucional em exame. O que se propôs dessa forma à escolha popular envolve questões técnicas que superam, em muito, o entendimento do eleitor comum. Ao analisar em excelente tese acadêmica os mecanismos de particpação popular nas decisões políticas, a Professora Maria Victoria de Mesquita Benevides ressaltou que a formulação das questões 'constitui um dos problemas cruciais na definição dos procedimentos da democracia semidireta como colocar a questão para a consulta popular, maximizando-se as vantagens em termos de objetividade e compreensão? Como evitar, na questão, as possibilidades de 'subsignificados implícitos' que, na prática, invalidam o sentido democrático da consulta? Como impedir que a ambigüidade da questão sirva aos interesses contrários às aspirações populares?'. (...) Para minimizá-los, sem se eludir a aplicação da norma, é de suma importância que se tomem todas as preucações ditadas pela prudência, como se passa a indicar." (O plebiscito do art. 2o das Disposições Constitucionais Transitórias, RT 686/12)
11 - Desse modo, em conclusão, sugerimos o veto integral à propositura em questão por ferir os princípios constitucionais da separação dos poderes (porque insere o plebiscito com instância de deliberação administrativa em assuntos cotidianos) , da legalidade (porque subordina a aprovação de projetos já conformes à legislação municipal à vénia popular, e porque não observa, quanto à iniciativa, os limites do art. 10 da LOM), da eficiência (porque inviabiliza a gestão eficiente da cidade) e da proporcionalidade (porque banaliza o uso de instituto constitucional que se deve reservar a questões que transcendam interesses paroquiais), bem como por padecer de acentuada deficiência técnica (dada a impossibilidade de verificar, do modo genérico e apriorístico nela exposto, as matéria de acentuada relevância legislativa e administrativa).
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São Paulo, 11/07/2016
ANTONIO MIGUEL AITH NETO
Procurador Assessor - AJC
OAB/SP n° 88.619
PGM
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De acordo.
São Paulo, 13/07/2016
TIAGO ROSSI
Procurador Assessor Chefe - AJC
OAB/SP 195.910
PGM
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TID n° 15290573 (memorando n° 310/2016-ATL-lll)
INTERESSADO: Assessoria Técnico-Legislativa
ASSUNTO: Projeto de Lei n° 476/15
Informação em continuação n° 806/2016-PGM.AJC
SECRETARIA DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS
Senhor Secretário
Encaminho o presente a Vossa Excelência com a manifestação da Assessoria Jurídico-Consultivo desta Procuradoria Geral do Município, que acolho, concluindo pelo veto integral ao Projeto de Lei n° 476/2015.
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São Paulo, 13/07/2016
MARINA MAGRO BERINGHS MARTINEZ
PROCURADORA GERAL DO MUNICÍPIO SUBSTITUTA
OAB/SP 169.314
PGM
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TID n° 15290573 (memorando n° 310/2016-ATL-lll)
INTERESSADO: Assessoria Técnico-Legislativa
ASSUNTO: Projeto de Lei n° 476/15
Continuação da informação n° 806/2016-PGM.AJC
SECRETARIA DO GOVERNO MUNICIPAL
Sr. Secretário,
Em atendimento ao pedido inaugural, retorno o presente a essa Secretaria com o parecer de Ementa n° 11.682 da Procuradoria Geral do Município, que acolho, o qual opina pelo veto integral ao projeto de lei n° 476/2015.
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São Paulo, 13/07/2016
ROBINSON SAKYIAMA BARREIRINHAS
SECRETÁRIO DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS
SNJ.G
Este texto não substitui o original publicado no Diário Oficial da Cidade de São Paulo