Processo 2005-0.185.131-0
INTERESSADO: OTÁVIO JOSE DOS SANTOS E OUTRA
ASSUNTO: Ação de usucapião que tem por objeto lote integrante de área maior originalmente destinada a espaço livre de loteamento aprovado pela Municipalidade e inscrito na circunscrição imobiliária pertinente. Estudo de domínio.
Informação nº 0442/2014-PGM.AJC
PROCURADORIA GERAL DO MUNICÍPIO
Assessoria Jurídico-Consultiva
Senhor Procurador Assessora Chefe
Trata-se de ação de usucapião por meio da qual o autor pretende seja reconhecido o seu domínio sobre o imóvel retratado no croqui patrimonial de fls. 16 (assinalado em amarelo) e que é parte integrante de um espaço livre de loteamento aprovado pelo Poder Público Municipal.
A ação foi julgada improcedente em primeira instância (fls. 145/148), precisamente porque reconheceu o Juízo a interferência total da área pretendida com um espaço livre (área verde/sistema de recreio) de loteamento/arruamento aprovado.
O E. Tribunal de Justiça, contudo, anulou a decisão de primeiro grau, uma vez ter entendido que a instrução processual ainda se mostrava insuficiente para permitir um seguro julgamento sobre a titularidade pública da área. Determinou-se, assim, o retorno dos autos à primeira instância para que fosse providenciada "a juntada dos documentos relativos à aprovação e ao registro do loteamento e eventual instrumento de doação do bem pelo loteador (...)" - fls. 166/172.
Diante da reabertura da instrução processual, foi solicitado a DEMAP 11 estudo de domínio que permitisse confirmar a natureza pública municipal da área maior em cujos limites se insere o imóvel usucapiendo.
O percuciente estudo desenvolvido por DEMAP confirmou o caráter público da indigitada área, razão pela qual propõe aquele departamento que, após deliberação superior, seja mantida a impugnação total do pedido do autor da ação de usucapião (fls. 285/293).
É o breve relatório.
Os judiciosos argumentos de DEMAP devem ser integralmente prestigiados, uma vez que demonstram com segurança a natureza pública da área maior onde se insere o lote usucapiendo.
Com efeito, os documentos fornecidos pelo 14º Cartório de Registros de Imóveis da Capital (fls. 214/215) comprovam que a área maior objeto do estudo corresponde ao espaço livre "1M", com aproximadamente 7.260,00m2, do loteamento (ARR 851) aprovado pelo alvará nº 748, de 10/01/55, modificado pelo alvará nº 829, de 16/06/55, e inscrito sob o nº 78, em 06/09/55. Aliás, há expressa referência, nestes documentos, à inalienabilidade das superfícies das ruas/vielas (17.053,00m2) e dos espaços livres (7.260,00m2).
A averbação da inscrição do loteamento, denominado "Jardim Nossa Senhora da Conceição", foi feita junto às transcrições nº 2.476, 7.860, 49.042 e 49.173 (todas do 14º SRI), que descrevem as glebas pertencentes a Firmino Barbosa de Oliveira. Consta, ademais, que o loteamento posteriormente veio a ser retratado na Planta AU 1024448, elaborada pela antiga SERLA (posteriormente RESOLO) com vistas à sua regularização - cf. fls. 66.
Na época da aprovação do loteamento, vigia o Decreto-lei nº 58, de 10 de dezembro de 1937, cujo artigo 3º previa um significativo efeito jurídico decorrente da inscrição do plano de parcelamento: a transferência ao patrimônio público municipal das áreas originariamente previstas nas plantas e memoriais como bens de uso comum do povo (ruas e espaços livres).
O cerne da questão a ser enfrentada, portanto, pode ser assim expressa: os atos de aprovação é inscrição do loteamento, sob a égide do Decreto-lei nº 58/37, teriam o condão de transferir automaticamente ao Município a titularidade do espaço livre objeto do presente processo? Ou seria necessário instrumento de doação do loteador ao Município?
Primeiramente, é preciso recordar que, mesmo em relação a parcelamentos não aprovados pelo Poder Público, esta Procuradoria Geral sempre defendeu a aquisição do domínio público por força da teoria do "concurso voluntário"1. Segundo a tese, amplamente aceita pela doutrina e pela jurisprudência, a transferência ao patrimônio municipal das áreas livres dos loteamentos decorre de dois atos: o oferecimento do loteador e o respectivo aceite da Prefeitura (a oficialização das vias, por exemplo).
Com maior razão, portanto, esta tese se aplica aos loteamentos regulares, nos quais a Prefeitura aceita o projeto apresentado pelo loteador e emite o respectivo alvará de aprovação. É exatamente o que ocorreu no presente processo, acrescentando-se que, além de aprovado, ele foi efetivamente executado no solo (cf. fls. 31/32 do p.a acompanhante: 1980-0.016.947-9) e inscrito no registro imobiliário.
Diversos julgados de nossos Tribunais já reconheceram que tanto a aceitação quanto a aprovação do loteamento são suficientes para que se efetive a transferência de domínio ao Município:
"Executado o arruamento, se a Municipalidade aceita o plano, opera-se a transmissão do domínio público"2.
"Loteamento. Aprovado o arruamento, para urbanização de terrenos particulares, as áreas destinadas às vias e logradouros públicos passam automaticamente para o domínio do município, independentemente de título aquisitivo e transcrição, visto que o efeito jurídico do arruamento é, exatamente, o de transformar o domínio particular em domínio público, para uso comum do povo. Não tem o loteador infringente do DL 58/37 mais direitos que o loteador a ele obediente. Inalterabilidade das plantas sem o consenso do município. Recurso conhecido, porém não provido"3.
Embora a aprovação do parcelamento seja suficiente para fazer com que os espaços livres passem a integrar o domínio público, neste caso ainda pode ser destacada uma circunstância adicional: o parcelamento também foi inscrito no registro imobiliário. E isto, como se sabe, só vem a reforçar a convicção acerca do caráter público da indigitada área.
Com efeito, dispõe o art. 3º do Decreto-lei nº 58/37, in verbis:
"Art. 3º - A inscrição torna inalienáveis, por qualquer título, as vias de comunicação e os espaços livres constantes do memorial e da planta".
A par da inscrição, pode ser verificada nos documentos imobiliários (fls. 214/215) a menção às áreas livres (ruas, vielas e espaços livres) que foram destinadas à Prefeitura, com explícita referência a sua inalienabilidade nos termos do art. 3º do Decreto-lei nº 58/37.
Por outro lado, ao contrário do que parece ter sinalizado o acórdão que determinou a anulação da sentença e reabriu a fase de instrução (fls. 166/172), não há necessidade de a Municipalidade providenciar a juntada de "eventual instrumento de doação do bem pelo loteador".
Sobre esta questão, e sempre se baseando no princípio de que os bens públicos não possuem o mesmo sistema de registro dos bens particulares, são claras as lições doutrinárias contemporâneas do Decreto-lei n° 58/37.
Diz Pontes de Miranda:
" Tem-se pretendido que as vias de comunicação e os espaços livres somente se tornem públicos por ato dos interessados, entregando-os à Prefeitura Municipal. De modo nenhum. A aprovação do loteamento faz públicas as vias de comunicação e públicos os espaços livres com a exigência de serem ultimadas pelos loteadores as obras das vias de comunicação e dos espaços livres e da modificabilidade segundo o Decreto-lei nº 58"4
E também Hely Lopes Meirelles:
"Superfetação é pretender o Município uma escritura de doação, para subseqüente registro das ruas e praças em seu nome. Nem mesmo se faz mister, a nosso ver, a inscrição do loteamento para que consideremos incorporados no domínio municipal esses bens de uso comum do povo, decorrentes da urbanização de área particulares. A inscrição só é exigível para fins de alienação dos lotes, sem qualquer implicação com as áreas de domínio público, não sujeitas às normas civis e às exigências de comercialidade de bens particulares"5.
A despeito de ser prescindível à aquisição do domínio público, não é desnecessário lembrar, em reforço à tese da transferência automática do espaço livre ao patrimônio público, que a inscrição é um ato registrário e, nessa qualidade, produz todos os efeitos em relação a terceiros, como se fosse uma doação. Mais uma razão porque se mostra equivocada a exigência de um instrumento específico de doação do espaço livre.
Uma vez ter sido comprovado documentalmente que o loteamento foi aprovado pelo Poder Público e inscrito na respectiva serventia imobiliária - com menção explícita à inalienabilidade das áreas livres, ruas e vielas -, não parece haver dúvida jurídica acerca do caráter público do imóvel estudado neste processo, mostrando-se irrelevante a inexistência de instrumento de doação do espaço livre ao Poder Público.
Muito embora se reconheça que a Municipalidade perdeu uma ação reivindicatória a respeito de um outro trecho deste mesmo espaço livre6, necessário ponderar, na esteira de DEMAP, que o malogro não se deu propriamente em virtude do mérito da questão debatida, mas antes por uma circunstância processual, de prova - a ausência de comprovação da inscrição do loteamento do loteamento (cf. fls. 201) -, o que não é capaz de infirmar a tese (concurso voluntário) que vem sendo defendida pela Municipalidade em Juízo. Sobretudo quando os documentos de fls. 214 e seguintes poderão prestar-se exatamente a esta comprovação.
De qualquer modo, é preciso enfatizar que o lote usucapiendo tratado neste processo não integra o trecho abrangido pela coisa julgada da indigitada ação reivindicatória.
Poder-se-ia argumentar, ainda, que a questão não é assim tão simples, porque, após a execução do loteamento, o espaço livre foi objeto de "grilagem". Humberto Buono apoderou-se do imóvel e, com base numa transcrição de 1928 (Transcrição nº 58.874/ 1º SRI - fls. 177/187), passou a alienar os lotes a terceiros. Dentre estes lotes está o imóve! usucapiendo (quadra fiscal de fl. 15 e fl. 217).
Em relação a esta duvidosa transcrição, bem destacou DEMAP, todavia, que o próprio Oficial do 1º Cartório de Registro de Imóveis reconheceu não possuir elementos para afirmar com segurança a sua identidade com o local (fl. 183).
A mesma conclusão foi alcançada por RESOLO nos autos do PA nº 45.001.597-91*54, que tratou de outra ação de usucapião cujo objeto era um lote vizinho integrante do mesmo espaço livre que ora se analisa. O referido órgão técnico enfatizou a existência da invasão da área, salientando que os próprios cartórios envolvidos se recusavam a registrar alienações de lotes na transcrição nº 58.874, por reconhecerem que o seu titular (Humberto Buono) era um notório "grileiro" (cf. fls. 248, v.).
Outra não foi, aliás, a solução judicial dada à referida ação de usucapião. Consoante se depreende da sentença copiada às fls. 265 e s.s., a perícia concluiu que a área usucapienda se inseria no espaço livre do loteamento denominado Jardim Nossa Senhora da Conceição.
Ainda a esse respeito, vale a pena deixar registrado que, nos autos do PA nº 1980-0.016.947-9, ora acompanhante, o então denominado PATR enfatizou que o pretenso domínio do "grileiro" Humberto Buono sobre o espaço livre em questão chegou a ser "desmoralizado" em outra demanda que a Municipalidade teve contra ele (cf. fl. 31 do referido processo e fl. 290 do parecer de DEMAP).
O antigo RESOLO, nos autos do PA nº 1980 000.042-3 (ora acompanhante) - que trata da apresentação, pelo loteador regular original, Firmino Barbosa de Oliveira, de projeto modificativo do loteamento -, mais uma vez reconheceu a "grilagem" empreendida por Humberto Buono e a consequente fragilidade registrária da Transcrição nº 58.874, a qual foi utilizada para fundamentar a venda dos lotes (dentre os quais se inclui o imóvel usucapiendo).
Ressalte-se, outrossim, que o título do loteador regular original tem lastro na Transcrição nº 42.282, de 11/01/1906, do 14º SRI da Capital (cf. fls. 239/240). Ao revés, o título de que se valeu o "grileiro" Humberto Buono tem filiação no "Registro Parochial de São Bernardo", de 15/05/1856, que contém a descrição de "terras de sesmaria" e a respeito da qual, como já afirmado, a própria serventia imobiliária não encontrou elementos que permitissem uma identificação entre estas terras e a área usucapienda (cf. fls. 183 e ss.).
Ante o exposto, permite-se concluir que se afigura recomendável sustentar o caráter público do trecho do espaço livre não atingido pela coisa julgada da ação reivindicatória, porquanto: (i) há comprovação da aprovação, execução, modificação e inscrição do loteamento, com expressa reserva dos espaços livres tornados inalienáveis por força do art. 3º do Dec-lei nº 58/37; (ii) para a configuração do concurso voluntário nos termos do Dec-lei nº 58/37, não se mostra necessário instrumento de doação das áreas livres em favor da Prefeitura; (iii) restou demonstrado que o lote usucapiendo foi comprado de um "grileiro", que se ocupou indevidamente área municipal com base em transcrição imobiliária de origem duvidosa, razão porque deve prevalecer, o título pertencente ao loteador original (Firmino Barbosa de Oliveira), à margem do qual foi averbada a inscrição do loteamento; (iv) em outra ação de usucapião relativa ao mesmo espaço livre, a Municipalidade fez prevalecer a tese do caráter público da área; e (v) o malogro da Urbe no bojo de ação reivindicatória sobre uma outra parte desse espaço livre decorreu de uma questão processual (ausência de comprovação da inscrição do loteamento), circunstância que não é capaz de infirmar a tese defendida na ação judicial objeto do presente, especialmente porque é perfeitamente possível comprovar a referida inscrição a partir dos documentos constantes do presente processo.
Anote-se, por fim, que a justa preocupação de DEMAP com os problemas financeiros e sociais subjacentes a uma eventual tentativa de desocupação dos lotes adquiridos por terceiros de boa-fé poderá ser objeto de apreciação posteriormente, por ocasião da eventual deliberação sobre a inviabilidade da retomada da área pública.
Com estas considerações, concluindo que, em virtude da natureza pública do bem, deve ser mantida a contestação da ação de usucapião, encaminho o presente para deliberação do Sr. Procurador Geral do Município.
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São Paulo, 14 de março de 2014.
FERNANDO HENRIQUE MINCHILLO CONDE
Procurador do Município
OAB/SP nº 195.025
PGM/AJC
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De acordo.
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São Paulo, 14/03/2014.
TIAGO ROSSI
PROCURADOR ASSESSOR CHEFE - AJC
OAB/SP 195.910
PGM
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1 v.g., a Informação nº 711/12-PGM-AJC, elaborada pelo i. procurador Ricardo Gaúche de Matos.
2 RDA 87/218."
3 RE 84327/SP - São Paulo, Rel. Min. Cordeiro Guerra, j. 28/09/1976, RTJ 79/991.
4 Tratado de Direito Privado, Parte Especial, Tomo XIII, RJ, Borsoi, 1955, p. 89.
5 Apud José Nilo de Castro, Direito Municipal Positivo, 5ª ed, BH, 2011, Del Rey, p. 257
6 Embora se trate de outra parte da área, a origem da aquisição do domínio público é a mesma: a aceitação e aprovação do loteamento "Jardim Nossa Senhora da Conceição".
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Processo 2005-0.185.131-0
INTERESSADO: OTÁVIO JOSE DOS SANTOS E OUTRA
ASSUNTO: Ação de usucapião que tem por objeto lote integrante de área maior originalmente destinada a espaço livre de loteamento aprovado pela Municipalidade e inscrito na circunscrição imobiliária pertinente. Estudo de domínio.
Cont. da Informação nº 0442/2014-PGM.AJC
SECRETARIA DOS NEGOCIOS JURÍDICOS
Senhor Secretário
Encaminho estes autos a Vossa Excelência, com as manifestações de DEMAP e da Assessoria Jurídico-Consultiva desta Procuradoria Geral, que acompanho, conclusivas no sentido do caráter público do espaço livre onde se situa o lote usucapiendo, devendo a Municipalidade impugnar a ação de usucapião aqui tratada.
Acompanham: PA´s 1980-0.000.042-3, 1981-0.004.738-3, 1982-0.001.966-7, 1980-0.016.947-9 e 1980-0.025.134-5.
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São Paulo, / /2014.
ROBINSON SAKIYAMA BARREIRINHAS
PROCURADOR GERAL DO MUNICÍPIO
OAB/SP nº 173.527
Este texto não substitui o original publicado no Diário Oficial da Cidade de São Paulo