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PARECER PROCURADORIA GERAL DO MUNICÍPIO - PGM Nº 1.110 de 31 de Agosto de 2015

Informação n° 1.110/2015 - PGM-AJC
Contratos de fornecimento contínuo. Aquisição de medicamentos. Consulta a respeito do prazo de vigência desses contratos.

TID n° 13931053

INTERESSADO: SECRETARIA MUNICIPAL DA SAÚDE 

ASSUNTO: Contratos de fornecimento contínuo. Aquisição de medicamentos. Consulta a respeito do prazo de vigência desses contratos.

Informação n° 1.110/2015 - PGM-AJC

PGM.G

Sr. Procurador Geral

Trata o presente de consulta encaminhada pela Secretaria Municipal da Saúde a respeito do prazo de vigência dos contratos de fornecimento contínuo, especificamente os contratos destinados à aquisição de medicamentos.

Nesse contexto, a Pasta ressalta precedente do Tribunal de Contas da União que, em auditoria realizada para analisar a aquisição de hemoderivados pelo Ministério da Saúde, recomenda, entre outras medidas, a adoção em caráter excepcional de interpretação extensiva do disposto no art. 57, II, da Lei Federal nº 8.666/93, considerando tais aquisições como serviços de natureza contínua.

A Assessoria Jurídica observa que tal interpretação difere daquela que tradicionalmente é dada pela Corte de Contas da União e adotada na Pasta. Afirma, também, que tal precedente conflita com a Informação nº 1.848/2011 - PGM.AJC, juntada por cópia a fls. 46/55. De qualquer forma, indaga se seria possível encampar o entendimento do TCU para casos semelhantes.

Outro objeto de dúvida recai sobre o disposto no art. 57, I, da mesma Lei. Muito embora a Assessoria Jurídica posicione-se de forma desfavorável, indaga se o Plano Municipal de Saúde de São Paulo poderia ser invocado para atender a exigência legal.

Por fim, questiona se a vigência dos contratos de aquisição deve se limitar ao encerramento do exercício financeiro ou se podem ter prazo de duração de 12 meses, ainda que ultrapasse o exercício financeiro em curso.

E o relatório.

Em nosso sentir, três são os aspectos que devemos abordar para resposta aos quesitos formulados: (i) qual a interpretação adequada ao art. 57, caput, da Lei Federal nº 8.666/93; (ii) o art. 57, II, da mesma lei abrange apenas os serviços continuados, ou admite interpretação extensiva para alcançar os contratos de fornecimento continuado; e (iii) se outros instrumentos de gestão pública, como Plano Municipal de Saúde, podem substituir o Plano Plurianual, exigido no art. 57, I, também da Lei Federal nº 8.666/93.

Eis a transcrição do art. 57:

Art. 57. A duração dos contratos regidos por esta Lei ficará adstrita à vigência dos respectivos créditos orçamentários, exceto quanto aos relativos:

I - aos projetos cujos produtos estejam contemplados nas metas estabelecidas no Plano Plurianual, os quais poderão ser prorrogados se houver interesse da Administração e desde que isso tenha sido previsto no ato convocatório;

II - à prestação de serviços a serem executados de forma contínua, que poderão ter a sua duração prorrogada por iguais e sucessivos períodos com vistas à obtenção de preços e condições mais vantajosas para a administração, limitada a sessenta meses; (Redação dada pela Lei nº 9.648. de 1998)

III - (Vetado). (Redação dada pela Lei nº 8.883. de 1994)

IV - ao aluguel de equipamentos e à utilização de programas de informática, podendo a duração estender-se pelo prazo de até 48 (quarenta e oito) meses após o início da vigência do contrato.

V - às hipóteses previstas nos incisos IX, XIX, XXVIII e XXXI do art. 24, cujos contratos poderão ter vigência por até 120 (cento e vinte) meses, caso haja interesse da administração. (Incluído pela Lei nº 12.349, de 2010)

§ 1º Os prazos de início de etapas de execução, de conclusão e de entrega admitem prorrogação, mantidas as demais cláusulas do contrato e assegurada a manutenção de seu equilíbrio econômico-financeiro, desde que ocorra algum dos seguintes motivos, devidamente autuados em processo:

I - alteração do projeto ou especificações, pela Administração;

II - superveniência de fato excepcional ou imprevisível, estranho à vontade das partes, que altere fundamentalmente as condições de execução do contrato;

III - interrupção da execução do contrato ou diminuição do ritmo de trabalho por ordem e no interesse da Administração;

IV-aumento das quantidades inicialmente previstas no contrato, nos limites permitidos por esta Lei;

V - impedimento de execução do contrato por fato ou ato de terceiro reconhecido pela Administração em documento contemporâneo à sua ocorrência;

VI - omissão ou atraso de providências a cargo da Administração, inclusive quanto aos pagamentos previstos de que resulte, diretamente, impedimento ou retardamento na execução do contrato, sem prejuízo das sanções legais aplicáveis aos responsáveis.

§ 2º Toda prorrogação de prazo deverá ser justificada por escrito e previamente autorizada pela autoridade competente para celebrar o contrato.

§ 3º É vedado o contrato com prazo de vigência indeterminado.

§ 4° Em caráter excepcional, devidamente justificado e mediante autorização da autoridade superior, o prazo de que trata o inciso II do caput deste artigo poderá ser prorrogado por até doze meses. (Incluído pela Lei nº 9.648, de 1998)

Quanto ao primeiro ponto, é forçoso reconhecer que a Lei de Licitações, ao tratar da regra geral de duração dos contratos administrativos (art. 57, caput), estabeleceu norma de difícil compreensão, uma vez que, em tese, limitou a duração dos contratos à vigência dos respectivos créditos orçamentários.

Assim, numa interpretação literal todos os contratos administrativos, excetuadas as hipóteses previstas nos incisos do caput, deveriam encerrar sua vigência no dia 31/12 de cada exercício financeiro1. Isso porque os créditos orçamentários encerram-se nesta data, abrindo-se novo orçamento no exercício seguinte. 

Todavia, não nos parece que essa seja, embora defendida por muitos autores, a melhor interpretação que se deve empregar ao art. 57, caput, sob pena de engessamento da Administração.

A nosso ver, a regra do caput deve ser interpretada conjuntamente com àquela prevista no §1º, do mesmo artigo, que estabelece as hipóteses em que os prazos de início de etapas de execução, de conclusão e de entrega admitem prorrogação.

Isso porque o §1º deixa claro que a mens legis do caput é coibir que os contratos administrativos arrastem-se indefinidamente durante os diversos exercícios financeiros, ao criar hipóteses específicas para a prorrogação do prazo inicialmente estipulado para as obrigações previstas no contrato.

A bem da verdade, o art. 57 estipulou regra relacionada à vigência dos contratos para definir como comando geral a impossibilidade de prorrogação dos contratos administrativos, estabelecendo hipóteses restritas de prorrogação, previstas no art. 57, §1º, da lei.

Aqui, imperioso constatar gue as exceções constantes dos incisos do art. 57 referem-se, a rigor, aos casos em que é possível a prorrogação da vigência do prazo contratual, independentemente da ocorrência das situações previstas no art. 57, §1º.

Dessa maneira, ao utilizar a expressão "respectivos créditos orçamentários", nos parece que a lei determinou que a vigência nunca será superior a dos créditos orçamentários que o prazo contratual alcançar, ou seja, se este ultrapassar o exercício financeiro, cada etapa deverá respeitar o crédito orçamentário do exercício na qual será realizada a despesa2.

Logo, viável ao administrador realizar, por exemplo, contrato para aquisição parcelada de mercadoria, prevendo prazo de execução contratual que ultrapasse o exercício financeiro, desde que delimite os prazos iniciais e finais da execução.

De outro lado, ainda na situação ilustrada, seria defeso ao administrador prever a simples prorrogação de tais prazos avençados, salvo a superveniência de uma das situações previstas no art. 57, §1º, da Lei Federal nº 8.666/93.

Do mesmo modo, defesa a previsão de entrega total do objeto em um exercício, sem que existam créditos orçamentários adequados a suportar a despesa.

Contudo, reconhecemos que a posição aqui defendida encontra inúmeras vozes contrárias, calcadas não só na interpretação literal do dispositivo acima aludida, como também no argumento de que tal interpretação vai ao encontro do disposto no art. 167 da Constituição Federal e nos art. 15 e 16 da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Com efeito, a tese comumente propalada é a de que o art. 57, caput está em consonância com o art. 167, da Constituição Federal, in verbis:

Art. 167. São vedados:

I - o início de programas ou projetos não incluídos na lei orçamentária anual;

II - a realização de despesas ou a assunção de obrigações diretas que excedam os créditos orçamentários ou adicionais;

(...)

§ 1º Nenhum investimento cuja execução ultrapasse um exercício financeiro poderá ser iniciado sem prévia inclusão no plano plurianual, ou sem lei que autorize a inclusão, sob pena de crime de responsabilidade.

(...)"

Nesse sentido, sustenta Marçal Justen Filho, que as regras acima "destinam-se a submeter o desenvolvimento da atividade administrativa à observância das autorizações orçamentárias". E acrescenta que, "seria inútil submeter a instauração da licitação e a formalização da contratação à existência de previsão de recursos orçamentários se fosse facultado à Administração promover avença com prazo de vigência mais delongado. Logo, o disposto no caput do art. 57 apenas complementa uma disciplina que apresenta importância nuclear na atividade administrativa"3.

E, embora concordemos que a Lei Geral de Licitações disciplinou regra de contenção da atuação administrativa em conformidade com a Constituição, o dispositivo em comento não vedou a formalização de contrato que ultrapasse o exercício financeiro

Caso contrário, não haveria exceções, salvo os investimentos passíveis de previsão no plano plurianual. No entanto, a maioria da doutrina e Cortes de Contas chancelam a possibilidade de contratos que ultrapassem o exercícios financeiro, conforme decisão do Tribunal de Contas da União - TCU a respeito do art. 57, II, transcrita por Joel de Menezes Niebuhr4:

Não existe a necessidade de fixar a vigência coincidindo com o ano civil, nos contratos de serviços continuados cuja duração ultrapasse o exercício financeiro em curso, uma vez que não pode ser confundido o conceito de duração dos contratos administrativos (artigo 57 da Lei nº 8.666/93) com a condição de comprovação de existência de recursos orçamentários para o pagamento das obrigações executadas no exercício financeiro em curso (artigo 7º, §2º, inciso III, da Lei nº 8.666/93), pois nada impede que os contratos dessa natureza tenham vigência fixada para 12 meses, ultrapassando o exercício financeiro inicial, e os créditos orçamentários fiquem adstritos ao exercício financeiro em que o termo contratual é pactuado, conforme dispõe o artigo 30 e parágrafos do Decreto nº 93.872/96 (/decisão nº 586/2002, 2ª Câmara, Rel. Adylson Motta. Julg. 21/11/2002).

Esse entendimento, como dito, é acompanhado pela maioria da doutrina, que ao comentar o art. 57, II, da LL admite que a vigência do contrato supere o exercício financeiro5.

Na verdade, trata a Constituição da realização de despesa de acordo com as leis orçamentárias. Pode parecer sutil, mas há que se notar a diferença: o que não pode ultrapassar o crédito orçamentário de cada exercício financeiro é a despesa que nele será realizada e não a vigência do contrato. De outro modo, um contrato que ultrapasse o exercício financeiro deve ter as despesas que serão executadas no orçamento em curso previstas na lei orçamentária anual e gera uma obrigação ao administrador de inseri-la na lei do exercício seguinte.

Do mesmo modo, não trata a Lei de Responsabilidade Fiscal do prazo de vigência dos contratos, limitando-o ao término do exercício financeiro. Para melhor compreensão, transcrevemos o art. 16:

Art. 16. A criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento da despesa será acompanhado de:

I - estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva entrar em vigor e nos dois subseqüentes;

II - declaração do ordenador da despesa de que o aumento tem adequação orçamentária e financeira com a lei orçamentária anual e compatibilidade com o plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias.

§ 1º Para os fins desta Lei Complementar, considera-se:

I - adequada com a lei orçamentária anual, a despesa objeto de dotação específica e suficiente, ou que esteja abrangida por crédito genérico, de forma que somadas todas as despesas da mesma espécie, realizadas e a realizar, previstas no programa de trabalho, não sejam ultrapassados os limites estabelecidos para o exercício;

II - compatível com o plano plurianual e a lei de diretrizes orçamentárias, a despesa que se conforme com as diretrizes, objetivos, prioridades e metas previstos nesses instrumentos e não infrinja qualquer de suas disposições.

§ 2º A estimativa de que trata o inciso I do caput será acompanhada das premissas e metodologia de cálculo utilizadas.

§ 3º Ressalva-se do disposto neste artigo a despesa considerada irrelevante, nos termos em que dispuser a lei de diretrizes orçamentárias.

§ 4º As normas do caput constituem condição prévia para:

I - empenho e licitação de serviços, fornecimento de bens ou execução de obras;

II - desapropriação de imóveis urbanos a que se refere o § 3º do art. 182 da Constituição.

Quanto à correta interpretação do art. 16 da LRF, socorremo-nos das lições de Carlos Maurício Figueiredo6:

O disposto neste artigo coaduna-se com o planejamento e conseqüente equilíbrio fiscal buscado pela LRF. Não se está estipulando regras para toda e qualquer despesa efetuada pelo Estado. Uma vez que aquelas já consignadas na lei orçamentária não se submetem aos novos requisitos impostos pelo dispositivo em análise.

Na verdade, entendemos que trata-se da obrigação de demonstrar o impacto orçamentário-financeiro (inciso I) e a compatibilidade com o plano plurianual e com a LDO (inciso II), apenas para aumento de despesas advindas da criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental. Assim entendidas aquelas derivadas das alterações orçamentárias. Na lição do Prof. Heraldo da Costa Reis, estas alterações se materializam através dos créditos adicionais ou do remanejamento, da transposição e da transferência, que são instrumentos estabelecidos pelo artigo 167, VI, da CF.

Careceria de razoabilidade exigir a análise do impacto orçamentário-financeiro para despesas com dotação já aprovadas no orçamento, posto que esse impacto já foi analisado durante a fase de elaboração do orçamento, estando ínsito a essa fase o aspecto do planejamento.

Perceba-se que nem toda alteração orçamentária promove a criação, expansão ou aperfeiçoamento da ação governamental. Há casos em que a alteração se faz necessária, unicamente, para adequar o valor do crédito orçamentário consignado, sem implicar criação, expansão ou aperfeiçoamento da mesma. Apenas suplementa-se o orçamento para consecução dos objetivos de ação governamental já planejada.

Para além de deixar claro que as providências descritas no dispositivo não se aplicam a todas as despesas contraídas, aqui também evidente o espírito de que ao administrador público é vedada a contração de obrigações sem a respectiva previsão orçamentária. Contudo, isso não significa que o contrato deverá ter a vigência coincidente com o exercício financeiro, mas apenas que as obrigações nele previstas para serem executadas no exercício em curso possam ser suportadas pelos créditos orçamentários vigentes.

A bem de ver, a interpretação proposta é a que melhor se coaduna com a tradicional diferenciação traçada pela doutrina a respeito dos contratos por escopo e contratos por prazo. Nos primeiros, afirma-se só há o encerramento do contrato quando finalizado seu objeto. Já no segundo, a obrigação contratual renova-se no tempo e, por isso, o término se dá com o prazo estipulado, pois, digamos, o objeto não se esgota.

Aqui também, sem grandes discussões, admite-se que a vigência do contrato por escopo possa ultrapassar o exercício financeiro, visto que este não reflete necessariamente o prazo adequado para o término da prestação e, portanto, para o encerramento do contrato.

De toda forma, mesmo sendo contrato por escopo, a cada exercício financeiro, as obrigações que nele serão executadas devem ter cobertura dos créditos orçamentários do ano em curso.

Obviamente, não estamos aqui querendo afirmar que os contratos em geral possam ter prazos indeterminados (o que é expressamente vedado por lei) ou que indistintamente possam ultrapassar o exercício financeiro.

A duração do contrato guarda estreita relação com  o planejamento administrativo, pautado pela necessidade do objeto a ser contratado, o prazo necessário, os entraves existentes em caso de interrupção, entre outras justificativas que, de algum modo, é claro, deverão estar registradas no processo de licitação ou contratação.

De mais a mais, não há como se ignorar que questões práticas podem propiciar a celebração de contratos com prazo de vigência que ultrapassem o exercício financeiro, como, por exemplo, suspensão de processos de licitação pelos órgãos de controle, decisões judiciais que interferem na condução do processo. Tais eventos, ainda que admitidos no planejamento, podem ganhar extensões imprevisíveis.

Fora isso, não teria a Administração como renovar todos seus contratos no início de cada exercício financeiro, quando os sistemas orçamentários ainda não estão em operação.

Com tais ponderações, ao se admitir que contratos de fornecimento podem ter vigência que supere o exercício financeiro, de certo modo, perde importância prática o segundo aspecto colocado para análise pela Pasta de origem: o art. 57, II, da mesma lei abrange apenas os serviços continuados, ou admite interpretação extensiva para alcançar os contratos de fornecimento continuado.

Como dito, o indigitado inciso do art. 57 trata de regra de prorrogação dos contratos que tenham por objeto serviços a serem executados de forma continuada. Tais contratos podem ser prorrogados com vistas à obtenção de preços e condições mais vantajosas para a administração, limitada a duração a sessenta meses.

Aqui, ao firmar contratos deste jaez, poderá o ordenador da despesa estipular o prazo durante o qual serão prestados de forma contínua os serviços, bem como a possibilidade de prorrogação desse prazo inicial, sem realização de nova licitação. De qualquer forma, assim como nas hipóteses do caput as despesas de cada exercício devem respeitar a vigência dos créditos orçamentários.

O aspecto a ser considerado, portanto, é sobre a possibilidade de prorrogação dos contratos de fornecimento contínuo, a exemplo do admitido pelo Tribunal de Contas da União para os contratos de fornecimento contínuo de fatores de coagulação.

A questão é intrigante, pois o dispositivo legal referiu-se apenas aos serviços continuados e a lei de licitação, por sua vez, define o que deve ser entendido por serviço e por compras7.

Nesse sentido, a rigor, a prorrogação só seria admitida aos contratos para prestação de serviços contínuos, estando os de fornecimento, ainda que contínuo, submetidos à regra geral de não prorrogação dos contratos administrativos.

De outra banda, situações da vida têm levado ao intérprete do direito constatar que há uma lacuna na Lei de Licitações. Isso porque os contratos de fornecimento contínuo assemelham-se aos de prestação de serviço contínuo, uma vez que em ambos o devedor desincumbe-se de suas obrigações, prestando-as de forma continuada, sendo que a necessidade administrativa não se esgota, é contínua. Isso pode se dar tanto na prestação de um serviço, como no fornecimento de bens.

Para solução desse impasse, explica Tércio Sampaio Ferraz Jr8. que:

"O preenchimento de uma tal lacuna dá-se não por analogia (aplicação de norma relativa a um caso típico a um outro caso semelhante) mas por interpretação extensiva (ampliação do tipo normativo a uma espécie contida num gênero que é a razão do dispositivo) -(...). No caso, a regra geral (a duração dos contratos - todos - é adstrita à vigência dos respectivos créditos orçamentados) admite exceções que se referem a contratos de execução continuada, (gênero), dentre os quais se encontram os de prestação de serviços a serem executados de forma contínua (espécie), mas também outros, como o de fornecimento contínuo (espécie)

Conquanto, uma conhecida regra hermenêutica diga que os dispositivos de exceção devam ser interpretados restritivamente, a relação entre interpretação restritiva e extensiva não há de guiar-se pelo critério da literalidade. Interpretar restritivamente não é tomar o preceito ao pé da letra. Toda norma jurídica, por exprimir-se em língua natural, contém necessariamente conotações difusas e denotações vagas. Daí, o princípio segundo o qual toda norma exige interpretação. Como a norma se produz num contexto comunicativo (autoridade/sujeito) que envolve poder e sujeição, o jogo entre os atores (autoridade e sujeito) admite alternativas interpretativas. Quando a autoridade se exprime num código linguístico cerrado, o sujeito tende a ampliar seu campo de ação restringido pela autoridade. Quando esta se exprime num código aberto, o sujeito busca segurança e exige precisão. O jogo normativo, enquanto jogo de poder, explica a interpretação restritiva e extensiva. A extensão é, assim, apenas a tomada do mesmo preceito sob a ótica de um código aberto, enquanto a restrição o toma sob a ótica de um código fechado. Em caso de silêncio do legislador quanto a uma ação exigida administrativamente (como tratar os casos de contratos de execução continuada?), interpretar extensivamente é examinar, no caso, a possibilidade de se utilizar uma decodificação aberta que evite a paralisia administrativa (sobre interpretação restritiva e extensiva, cf. nosso, Introdução ao estudo do Direito, São Paulo, 1992, p. 295-297). Ou seja, a regra hermenêutica da interpretação restritiva para os dispositivos excepcionais não deve ser tomada absolutamente, mas em relação a um contexto: se a restrição resguarda uma intenção legislativa de certeza e segurança, ela cabe aos dispositivos que regulam exceções. Mas se, por força da mesma segurança e certeza, a extensão é exigida para que o objetivo da lei se realize (por exemplo, evitar uma paralisia da administração), a extensão deve ser praticada".

Dentro desse contexto, o autor admite a aplicação extensiva do artigo 57,II, da LL aos contratos de fornecimento contínuo, mas, de todo modo, ressalva que a questão "só pode ser resolvida, de caso para caso". Cabe ao administrador avaliar ser ou não um caso de fornecimento contínuo e que comporta a prorrogação para o fim de evitar a paralisia da administração.

Em nosso sentir, por vezes, esta pode ser uma tarefa árdua, pois, ao revés dos serviços de caráter continuado, como é o caso, por exemplo, da limpeza, vigilância, manutenção de equipamentos, o fornecimento, mesmo contínuo, poderá comportar oscilações de quantidade e especificações que exigem programações de entrega por um período menor, inviabilizando sucessivas prorrogações.

Como apontado no acórdão do Tribunal de Contas outras medidas podem ser utilizadas para minimizar o risco de descontinuidade de entrega, como a adoção de Atas de Registro de Preços.

Por fim, quanto ao último ponto de dúvida, se outros instrumentos de gestão pública, como Plano Municipal de Saúde, podem substituir o Plano Plurianual, exigido no art. 57, I, também da Lei Federal nº 8.666/93, concordamos com a manifestação jurídica precedente.

De fato, as leis orçamentárias estão definidas na Constituição Federal (art. 165), dentre as quais o Plano Plurianual. Por isso, não há como compará-lo com outros instrumentos de gestão utilizados pela Administração para programação de sua atuação administrativa.

Feitas essas considerações, passamos a responder os quesitos formulados:

(i) É possível que o contrato de fornecimento tenha prazo de vigência que ultrapasse o exercício financeiro, desde que as despesas previstas para cada período tenham previsão nas leis orçamentárias anuais. Além disso, a vigência do contrato deve refletir o planejamento da administração, com justificativas no processo quanto a quantidade, parcelamento da entrega e prazo.

Nestes casos, deverá o ordenador da despesa diligenciar no sentido de inserir na proposta de lei orçamentária anual do próximo exercício financeiro as despesas derivadas da contratação.

A entendimento da AGU constante da Orientação Normativa nº 39/2011, a nosso ver, trata dos restos a pagar, questão diversa da aqui exposta.

(ii) Não há impedimentos jurídicos absolutos para que aos contratos de fornecimento contínuo seja aplicada a regra do art. 57, II, da Lei de Licitações, admitindo-se, pois, a prorrogação por sucessivos períodos. Contudo, trata-se de hipótese excepcional para evitar a paralisia da administração e que deve ser avaliada a cada caso concreto.

(iii) O Plano Municipal de Saúde não equivale ao Plano Plurianual mencionado no art. 57,1, da Lei Federal nº 8.666/93.

À consideração e deliberação de V. Exa.

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São Paulo, 31 de agosto de 2015.

TICIANA NASCIMENTO DE SOUZA SALGADO

PROCURADORA ASSESSORA - AJC

OAB/SP 175.186

PGM

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De acordo.

TIAGO ROSSI

PROCURADOR ASSESSOR CHEFE - AJC

OAB/SP 195.910

PGM

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1 Segundo a Lei Federal n° 4.320/64, o exercício financeiro coincide com o ano civil (art. 34). Daí porque autores como Lucas Rocha Furtado, embora reconheça o transtorno administrativo causado por tal conclusão, sustenta que "dado que o orçamento vigora durante o ano civil, nenhum contrato administrativo poderá ter prazo de vigência com termo final ultrapassando o dia 31 de dezembro do ano em que tenha tido início sua vigência - ressalvadas as hipóteses indicadas nos incisos do art. 57, que poderão ser celebrados com prazos superiores ao do exercício financeiro", in Curso de licitações e contratos administrativos, 5ª ed, Belo Horizonte: Ed. Fórum,, 2013, p. 471.

2 Nesse sentido, traçando conclusões a respeito do art. 42, da LRF, parece-nos caminhar a assertiva de Flávio C. Toledo Jr. e Sérgio Ciquera Rossi, de que "sejam materiais, serviços ou obras, os contratos oneram cada orçamento anual, na mesma proporção em que se executa, de fato, a correspondente despesa. é o que se depreende doas arts. 7º, §2°, III e 57, ambos da Lei n° 8.666, de 1993", in Lei de responsabilidade fiscal comentada artigo por artigo, 3ª ed., São Paulo: NDJ, 2005, p. 270.

3 Comentários à lei de licitações e contratos administrativos, 15ª ed., São Paulo: Dialética, 2012, p. 829-830.

4 Licitação pública e contrato administrativo, 2ª ed., Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2012, p. 729. Cumpre-nos registrar que para o autor, defendendo posição mais restritiva, mesmo os contratos de prestação continuada devem observar seu término ao final do exercício financeiro, com a diferença de que eles podem ser prorrogados, nos termos do art. 57, II, da Lei 8.666/93.

5 Nesse sentido, confira-se FURTADO, Lucas Rocha, op. cit., p. 473 e JUSTEN FILHO, Marçal, op. cit., p. 833-834.

6 FIGUEIREDO, Carlos Maurício et al. Comentários à Lei de Responsabilidade Fiscal, 2.ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.

7 Art. 6º Para os fins desta Lei, considera-se:

I -(...)

II - Serviço - toda atividade destinada a obter determinada utilidade de interesse para a Administração, tais como: demolição, conserto, instalação, montagem, operação, conservação, reparação, adaptação, manutenção, transporte, locação de bens, publicidade, seguro ou trabalhos técnico-profissionais;

III - Compra - toda aquisição remunerada de bens para fornecimento de uma só vez ou parceladamente; (...)

8 Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas - Julho-Setembro de 1998, ano 6, n 24, RT, São Paulo, pp. 139-144.

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TID n° 13931053

INTERESSADO: SECRETARIA MUNICIPAL DA SAÚDE 

ASSUNTO: Contratos de fornecimento contínuo. Aquisição de medicamentos. Consulta a respeito do prazo de vigência desses contratos.

Cont. da Informação n° 1.110/2015 - PGM-AJC

SNJ.G

Sr. Secretário

Nos termos da manifestação da Assessoria Jurídico-Consultiva desta Procuradoria Geral, que acompanho, encaminho manifestação sobre a interpretação do art. 57, da Lei Federal nº 8.666/93 a respeito da vigência dos contratos administrativos para fornecimento contínuo.

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São Paulo, 08/09/2015

ANTÔNIO CARLOS CINTRA DO AMARAL FILHO

PROCURADOR GERAL DO MUNICÍPIO

OAB/SP nº 162.363

PGM

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TID n° 13931053

INTERESSADO: SECRETARIA MUNICIPAL DA SAÚDE 

ASSUNTO: Consulta a respeito do prazo de vigência dos contratos administrativos. Interpretação do art. 57 da Lei Federal 8.666/93.

Informação n.° 2480/2015-SNJ.G.

SMS/G

Senhor Secretário

Encaminho o presente com a manifestação da PGM/AJC, que acolho, a qual concluiu que é possível que os contratos administrativos tenham prazo de vigência que ultrapasse o exercício financeiro, desde que as despesas previstas para cada período tenham previsão nas leis orçamentárias anuais.

Por outro lado, com relação aos contratos de fornecimento contínuo, a possibilidade de prorrogação com fulcro no art. 57, II da Lei Federal 8.666/93 é medida excepcional, que deve ser avaliada pelo ordenador de despesa caso a caso.

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São Paulo, 17/09/2015

ROBINSON SAKIYAMA BARREIRINHAS

Secretário Municipal dos Negócios Jurídicos

SNJ.G.

Este texto não substitui o original publicado no Diário Oficial da Cidade de São Paulo