CASA CIVIL DO GABINETE DO PREFEITO

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Razões do Veto (LEI Nº 13.791 de 13 de Fevereiro de 2004)

RAZÕES DE VETO

Projeto de Lei nº 590/02

OF ATL nº 169, de 13 de fevereiro de 2004

Senhor Presidente

Por meio do Ofício nº 18/Leg.3/0044/2004, cujo recebimento acuso, Vossa Excelência encaminhou à sanção cópia autêntica do Projeto de Lei nº 590/02, de autoria da Vereadora Claudete Alves, aprovado por essa Egrégia Câmara na sessão de 20 de dezembro de 2003, que objetiva criar o Programa Municipal de Combate ao Racismo e o Programa de Ações Afirmativas para Afro-Descendentes da Prefeitura Municipal de São Paulo.

Ao pretender criar referidos programas (artigo 1º), prevê, em síntese, a propositura aprovada:

a) a consideração, para os efeitos da lei, como afro-descendentes, das pessoas que se enquadrem como pretos, pardos ou denominação equivalente, conforme classificação adotada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, dando-se a comprovação da origem étnica pela apresentação da respectiva certidão de nascimento (artigo 2º);

b) a obrigatoriedade de todos os órgãos da administração direta e indireta da Prefeitura do Município de São Paulo possuirem, em seus quadros de cargos em comissão, o limite mínimo de 30 (trinta por cento) de afro-descendentes, com a reserva de 15% (quinze por cento) das vagas para homens e 15% (quinze por cento) para mulheres, aplicando-se idêntica reserva aos programas de estágios profissionais (artigo 3º);

c) a determinação no sentido de constar, nos contratos, convênios e parcerias firmados entre a administração municipal (direta, indireta e fundacional) e as pessoas jurídicas de direito público ou privado, cláusula contemplando os aludidos percentuais de reserva de vagas para afro-descendentes em seus respectivos quadros de pessoal, estendendo-se a exigência a todos os níveis hierárquicos das empresas que participarem de processos licitatórios abertos por órgãos municipais (artigo 4º);

d) a observância de cota mínima de atores e modelos afro-descendentes nas peças publicitárias das empresas que participarem de licitações promovidas pela administração municipal, bem como nas peças publicitárias relativas às propagandas oficiais do Município (artigo 5º);

e) a constituição do Grupo de Implementação e Acompanhamento do Programa de Ações Afirmativas, composto por representantes das Secretarias Municipais de Gestão Pública-SGP, de Cultura-SMC, de Educação-SME, das Subprefeituras-SMSP, dos Negócios Jurídicos-SJ, de Finanças e Desenvolvimento Econômico-SF, bem como da Coordenadoria Especial de Assuntos da População Negra e da Coordenadoria Especial da Mulher, com a gama de competências que especifica (artigos 6º e 7º); e

f) o dever do Poder Executivo fomentar a implementação de medidas estabelecidas em acordos, tratados e convenções internacionais, que tenham o Brasil como signatário, sempre visando à promoção da igualdade de oportunidades para os afro-descendentes e mulheres na Cidade de São Paulo.

Revestindo-se a mensagem de inegável interesse público, porquanto em muito ampliará os atuais mecanismos administrativos voltados ao combate ao racismo e à promoção da igualdade de oportunidades entre os afro-descendentes e os demais segmentos étnicos da população, a deliberação desta Chefia do Executivo não poderia ser outra senão o acolhimento do texto aprovado, à exceção do disposto nos seus artigos 2º, 3º e 4º, ante sua inconstitucionalidade, ilegalidade e contrariedade ao interesse público, razão por que sou compelida a vetá-los com fundamento no artigo 42, § 1º, da Lei Orgânica do Município.

Por primeiro, cumpre asseverar que, no plano formal, a medida invade competência atribuída ou ao Chefe do Executivo local ou à União, com isso violando o princípio constitucional da independência e harmonia entre os Poderes, bem assim o princípio federativo (Constituição Federal, artigos 2º, e 1º e 18, respectivamente).

Com efeito, a reserva de cota de cargos em comissão para afro-descendentes diz respeito à organização administrativa e ao provimento de cargos, cuja matéria é de iniciativa legislativa privativa do Chefe do Executivo, nos termos do disposto no artigo 61, § 1º, inciso II, alíneas "b" e "c", da Constituição Federal, e no artigo 37, § 2º, incisos III e IV, da Lei Orgânica deste Município.

De igual modo deve ser entendida a determinação que objetiva obrigar as pessoas jurídicas públicas e privadas, quando vinculadas por contrato, convênio ou parceria ao Município, a observarem a indigitada reserva de cota nos seus quadros de pessoal, inclusive em todos os níveis hierárquicos, devendo essa exigência constar dos respectivos editais de licitações e pactos firmados. Isso em razão de enquadrar-se o assunto como norma geral aplicável a licitações e contratos administrativos, de competência legislativa privativa da União, a teor do artigo 22, inciso XXVII, da Constituição da República, daí a afronta ao mencionado princípio federativo.

Também no mérito o texto aprovado não reúne as condições para sua conversão em lei.

A reserva de cota de cargos em comissão, para provimento dentre pessoas enquadradas como afro-descendentes, além de não se coadunar com o princípio constitucional da isonomia (Const. da República, artigo 5º, "caput"), encontra óbice no artigo 19, inciso III, da Magna Carta, que veda a criação, pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, de distinções ou preferências entre brasileiros.

Nem se diga que esses obstáculos constitucionais poderiam ser contornados com a invocação da premissa segundo a qual a aplicação do princípio da igualdade, no sistema jurídico brasileiro, dentre outras conseqüências, implica tratar desigualmente os desiguais, porquanto a observância dessa regra acarretaria a necessária classificação dos objetos ou das situações tidas em consideração, não sendo absurda a hipótese desses objetos ou situações virem a ser, comparativamente, ao mesmo tempo iguais e desiguais, dependendo do critério adotado. Exemplificativamente, se o critério adotado for o fator sexo, homens e mulheres são de fato diferentes; se o critério, contudo, for a condição humana, homens e mulheres são iguais com relação a esse aspecto.

Assim ocorre, a toda evidência, com o critério do vínculo de raça entre o fator de discriminação e seus efeitos, seja porque o único sentido do disposto no precitado artigo 19, inciso III, do texto constitucional é a proibição de leis classificatórias dos cidadãos brasileiros, qualquer que seja o critério adotado para essa finalidade, consubstanciando tal regra reforço do próprio princípio isonômico, cabendo destacar que o tratamento desigual dos desiguais ou está constitucionalmente previsto ou sempre tem por objetivo ampliar ou conceder direitos a determinados grupos (crianças, idosos, portadores de necessidades especiais, etc), sem, entretanto, afetar ou restringir os direitos fundamentais de outros cidadãos.

A inconstitucionalidade, a ilegalidade e a contrariedade ao interesse público também estão presentes no artigo 4º da propositura, que estabelece a obrigatoriedade de observância, pelas pessoas jurídicas de direito público ou privado, daquela reserva de cota mínima de vagas para afro-descendentes, quando firmarem contrato, convênio ou parceria com o Município, devendo essa condição constar dos editais de licitação.

É que, em consonância com o artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal, as contratações firmadas com o Poder Público dar-se-ão mediante prévio processo de licitação pública que assegure a igualdade de condições a todos os concorrentes, apenas admitindo-se, nos termos da lei, exigências relacionadas à qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

Reforçando ainda mais esse desiderato constitucional, preceitua o artigo 3º da Lei Federal nº 8.666, de 21 de junho de 1993, que a licitação destina-se a garantir o princípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhe são correlatos.

Como se vê, não bastassem a inconstitucionalidade e a ilegalidade consistentes na imposição de exigência não prevista no ordenamento positivo, o pretendido comando acaba por frustrar um dos objetivos fundamentais do procedimento licitatório, qual seja, selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração, finalidade essa que dificilmente será alcançada se referida imposição vier a ser incorporada à legislação de regência da matéria, situação totalmente contrária ao interesse público.

Por derradeiro, impende registrar que o critério adotado para identificar os possíveis beneficiários da lei, isto é, os afro-descendentes, abrangendo os pretos, pardos e equivalentes, observada a classificação adotada pelo IBGE e comprovando-se a origem étnica mediante a apresentação de certidão de nascimento, contraria, igualmente, o interesse público.

De fato, convém ponderar que, embora disponha o IBGE de dados sobre as cores de pele da população brasileira, não se conhece eventual critério adotado por aquele órgão para a identificação de afro-descendentes.

No que diz respeito à apresentação de certidão de nascimento como prova da origem étnica, cabe aqui registrar que a cor da pele das pessoas não constitui informação de caráter obrigatório nos assentos de nascimento, podendo tal elemento constar ou não das respectivas certidões.

De conseguinte, sendo ineficazes o critério de identificação dos afro-descendentes, bem como o meio de sua comprovação, não é difícil prever o total comprometimento da operacionalização desse dispositivo, o que é contrário ao interesse público.

Nessas condições, evidenciadas as razões que me conduzem a vetar parcialmente a medida aprovada, atingindo o inteiro teor dos seus artigos 2º, 3º e 4º, fazendo-o com fulcro no artigo 42, § 1º, da Lei Orgânica deste Município, devolvo o assunto à apreciação dessa Egrégia Câmara.

Na oportunidade, renovo a Vossa Excelência protestos de elevado apreço e distinta consideração.

MARTA SUPLICY, Prefeita

Ao Excelentíssimo Senhor

ARSELINO TATTO

Presidente da Câmara Municipal de São Paulo