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RAZÕES DO VETO AO PROJETO DE LEI Nº 545/2005; OFÍCIO DE 26 de Junho de 2006

Razões de Veto ao Projeto de Lei nº 545/05

Ofício ATL nº 097/06

Ref.: Ofício SGP 23 nº 1626/2006

Senhor Presidente

Por meio do ofício referenciado, ao qual ora me reporto, Vossa Excelência encaminhou à sanção desta Chefia do Executivo cópia autêntica do Projeto de Lei nº 545/05, de autoria do Vereador Paulo Teixeira, aprovado por essa Egrégia Câmara em sessão de 24 de maio de 2006, que dispõe sobre a obrigatoriedade de contratação de população de rua pelas empresas vencedoras de licitação pública no Município de São Paulo.

A medida visa, em síntese, obrigar os órgãos da Administração Municipal Direta e Indireta, a Câmara Municipal e o Tribunal de Contas do Município a exigir, das empresas vencedoras de licitações destinadas a prestação de serviços ou a execução de obras, a contratação de pessoas em situação de rua em número equivalente a 2% do pessoal alocado ou, no mínimo, a uma pessoa para o cumprimento de cada contrato, cujo objeto seja compatível com a utilização de mão-de-obra com qualificação profissional básica. Determina, também, que a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social seria responsável pelo encaminhamento dos candidatos às vagas, a partir da indicação de associações civis.

Preliminarmente, necessário se faz apontar que, ao compelir empresários e prestadores de serviço a contratar empregados de certa condição social que sejam encaminhados por Secretaria Municipal, a propositura, além de legislar, de modo indireto, sobre direito do trabalho e emprego, invadindo competência privativa da União Federal, desatende o princípio da livre iniciativa, o qual a teor do artigo 170 da Constituição Federal, constitui um dos fundamentos de nossa ordem econômica. Segundo esse princípio, o exercício de qualquer atividade econômica, desde que lícita, é livre, sendo vedado ao Estado interferir nos objetivos econômicos da esfera privada.

A liberdade de iniciativa exclui a possibilidade de um planejamento vinculante por parte do Poder Público. Sobre o tema, Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra da Silva Martins ensinam que “O empresário deve ser o senhor absoluto na determinação de o que produzir, como produzir e por que preço vender (...) Qualquer restrição a essa liberdade há de decorrer da própria Constituição ou de leis editadas com fundamento nela.” (Comentários à Constituição do Brasil, Ed. Saraiva, p.16).

A ingerência do Poder Público na atividade econômica privada mostra-se ainda mais grave no caso do particular que, atendendo a todas as exigências contidas no edital de licitação, vence a competição e passa, a partir daí, a arcar com as despesas necessárias para a execução da obra ou serviço a que se propôs. Tem ele respaldo constitucional para exercer sua atividade e não pode sofrer a restrição em causa que, além do mais, não tem qualquer relação com o objeto contratado, contrariando o artigo 37, inciso XXI, da Carta Magna.

De acordo com esse preceito constitucional, o procedimento licitatório admite tão somente exigências referentes à qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. Ou seja, as cláusulas previstas no edital de licitação devem se voltar única e exclusivamente a assegurar que o objeto seja cumprido de modo efetivo e eficiente. Qualquer outra condição que não atenda a essa finalidade caracteriza-se como ilegal, pois restritiva do universo de competição do certame. Nesse mesmo sentido é a regra constante do artigo 3º, § 1º, inciso I, da Lei Federal nº 8.666, de 21 de junho e 1993 (Lei de Licitações).

Como se vê, a Constituição Federal, ao instituir o princípio da exigência mínima para a qualificação técnica e econômica dos licitantes, proíbe ao legislador o acréscimo de matérias estranhas à licitação.

Em desarmonia com esse princípio, a obrigação prevista no texto aprovado visa utilizar o instrumento da licitação para a proteção de um valor social. O procedimento licitatório, todavia, foi criado exclusivamente para garantir à Administração as melhores condições possíveis de contratação no que se refere ao preço e à qualidade do objeto, podendo participar do certame todas as pessoas que reúnam as condições necessárias para a execução do objeto contratado. Nada mais do que isso.

A meta da Administração, ao contratar uma obra ou serviço, é concluí-la dentro do prazo e pelo custo pré-estabelecido, não havendo espaço para atrasos ou aumento de despesas por razões apartadas da natureza da própria obra ou serviço. Vincular a formalização do contrato à admissão de pessoas em situação de rua terminaria por impor ao licitante maiores custos, os quais, naturalmente, seriam considerados na composição do preço proposto. Tome-se, a título de exemplo, a empresa que conta com quadro de funcionários completo, aptos à efetivação da obra ou serviço. Teria ela de promover dispensas, sujeitando-se aos correspondentes encargos trabalhistas, para admitir pessoas sem experiência e treinamento e com os problemas decorrentes da situação peculiar em que se encontram.

No caso, é importante relatar experiência levada a efeito pela própria Prefeitura: no 2º semestre de 2005 foi utilizado o serviço de albergados para a execução de uma obra piloto de cerca de 300m2 de calçada na entrada principal do Cemitério São Paulo, na Rua Cardeal Arcoverde, sob a direção da Secretaria Municipal de Coordenação das Subprefeituras. Os albergados recebiam bolsa de, aproximadamente, R$ 350,00 mensais e foram treinados pelo SENAI como calceteiros. No entanto, a incessante ocorrência de problemas de difícil gerenciamento durante toda a obra acabaram por impedir a continuidade dos trabalhos, inviabilizando a desejada extensão do Programa de Utilização de Albergados a outras Subprefeituras.

Esses problemas, relacionados ao perfil social, psicológico e de saúde das pessoas em situação de rua, desabituadas à disciplina imposta pelo ritmo do trabalho cotidiano, desenvolvido em equipe — como o desatendimento a horários e a convenções em geral, o não-uso dos equipamentos de segurança, o mau aproveitamento do treinamento, a falta de compromissos com resultados — tendem a ser constantes, em prejuízo de prazos e reservas orçamentárias e, ainda, da almejada qualidade dos serviços públicos.

A propósito, não se pode olvidar que, se o projeto viesse a ser convertido em lei, ao particular caberia responder civil e criminalmente por eventuais danos a terceiros e por acidentes de trabalho e, ainda, perante a Prefeitura, na hipótese de o objeto licitado não ser efetivado de modo satisfatório. Tais adversidades poderiam, inclusive, tornar o contrato antieconômico, tanto para o particular, quanto para a Prefeitura.

A bem da verdade, a ação de caráter eminentemente social visada pelo texto aprovado há de ser desenvolvida, nos termos dos artigos 221 e seguintes da Lei Maior Local, pelo Poder Público Municipal mediante a implementação de programas que auxiliem a população em situação de abandono e desabrigo a resgatar, de forma gradativa e com a supervisão de profissionais habilitados na área de assistência social, sua cidadania. Somente após, poderá essa população ser orientada a assumir funções no mercado de trabalho, sem que se possa, contudo, compelir quem quer que seja a contratá-la.

Merece, por fim, especial exame o dispositivo que prevê que a “Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social será responsável pelo encaminhamento dos candidatos às vagas, a partir da indicação feita pelas associações civis de assistência social.” (artigo 2º).

Tal dispositivo claramente extrapola o objetivo colimado pela propositura, qual seja, o de promover a inserção no mercado de trabalho das pessoas em situação de rua consideradas no seu universo, já que a contratação se restringiria às pessoas especialmente encaminhadas pelo Poder Público.

Pela redação do dispositivo, note-se que a contratada não poderia sequer selecionar os moradores de rua de acordo com os critérios por ela adotados tendo em vista o trabalho a ser executado. Ao contrário, teria de admitir pessoas que, por vezes, poderiam não atender os requisitos essenciais ao mister a ser desincumbido.

Por fim, qualquer forma de interferência da Prefeitura no emprego de funcionários pelo licitante contratado não se mostra consentânea com os princípios constitucionais norteadores da Administração Pública, considerando que indivíduos em idêntica situação poderiam vir a ser preteridos e, ainda, que a medida propiciaria, até mesmo, a prática de atos de improbidade administrativa consistentes, por exemplo, na obtenção de vínculo empregatício por pessoas determinadas e, quiçá, no atendimento de interesses outros dos servidores públicos e, inclusive, dos agentes políticos incumbidos do mencionado encaminhamento, o que, a toda evidência, não se pode admitir.

Pelo exposto, ante as razões apontadas que demonstram a inconstitucionalidade, ilegalidade e contrariedade ao interesse público do projeto de lei aprovado, vejo-me na contingência de vetá-lo na íntegra, com fulcro no § 1º do artigo 42 da Lei Orgânica do Município de São Paulo, devolvendo o assunto ao reexame dessa Egrégia Casa de Leis.

Na oportunidade, renovo a Vossa Excelência protestos de elevado apreço e consideração.

GILBERTO KASSAB

Prefeito

Ao

Excelentíssimo Senhor

ROBERTO TRIPOLI

Digníssimo Presidente da Câmara Municipal de São Paulo

 

 

Este texto não substitui o original publicado no Diário Oficial da Cidade de São Paulo