Razões de Veto ao Projeto de Lei nº 500/05
OF ATL nº 21/07
Ref.: Ofício SGP-23 nº 0088/2007
Senhor Presidente
Nos termos do ofício referenciado, Vossa Excelência encaminhou a esta Chefia do Executivo cópia autêntica da lei decretada por essa Egrégia Câmara em sessão de 26 de dezembro de 2006, relativa ao Projeto de Lei nº 500/05, de autoria da Vereadora Marta Costa, que dispõe sobre a inclusão de parágrafos ao artigo 2º da Lei nº 10.205, de 4 de fevereiro de 1986, e dá outras providências.
A propositura altera a Lei nº 10.205, de 4 de dezembro de 1986, que disciplina a expedição de licença de funcionamento de imóveis utilizados em atividades comerciais, industriais, institucionais, de prestação de serviços e similares. Dá nova redação ao artigo 2º dessa lei, mantendo a redação original do “caput” e acrescentando-lhe dois parágrafos, de modo a criar uma exceção para certas subcategorias de uso, listadas em quadro anexo ao Decreto nº 45.817, de 4 de abril de 2005 (classificação dos usos residenciais e não residenciais), nomeadamente o “templo de culto religioso”, cujos interessados venham a requerer licença e seja “constatada formalmente qualquer irregularidade”. Tal exceção consistiria em se conceder prazo de, no mínimo, dezoito meses, devendo ser obrigatoriamente ampliado pelo Poder Público, se necessárias “maiores adequações na irregularidade constatada” (sic), mediante o acréscimo de “prazo conveniente para que as exigências apontadas sejam completadas”.
Pelas razões a seguir indicadas, aponho veto total à propositura, por inconstitucionalidade, ilegalidade e contrariedade ao interesse público.
Como preliminar consideração, põe-se em relevo uma evidente e primeira inconstitucionalidade. É que o benefício da lei aprovada é concedido, unicamente, aos “templos de cultos religiosos”, abrangendo tanto os que abrigam menos de 500 pessoas quanto os que comportam número superior, definidos pelo Decreto nº 45.817, de 4 de abril de 2005, como pólos geradores de tráfego. Fere, assim, o princípio da isonomia, consagrado no artigo 5º, “caput”, da Constituição Federal, segundo o qual “todos são iguais perante a lei”. Celso Antonio Bandeira de Mello, em exame profundo dessa matéria, estudou os fatores de desequiparação, os quais permitem juridicamente a diferenciação das situações, de sorte que a Administração possa tratar diferentemente os desiguais, firmando o seguinte entendimento: “tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é adotado como critério discriminatório; de outro lado, cumpre verificar se há justificativa racional, isto é, fundamento lógico, para, à vista do traço desigualador acolhido, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade proclamada” (Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, Malheiros, 1993, pág. 21).
No caso em tela, tendo em conta a listagem das Subcategorias de Uso não residencial (nR), constantes do Quadro nº 2 Anexo ao Decreto nº 45.817, de 2005, dentre os inúmeros integrantes da Subcategoria de Uso nR2 – relativamente ao “Grupo de atividades: locais de reunião ou eventos (com lotação máxima de 500 pessoas)” –, e da Subcategoria nR3 – relacionada ao “Grupo de atividades geradores de impacto de vizinhança” –, nota-se que a propositura pinçou unicamente os templos religiosos, privilegiando-os e relegando assim as demais atividades constantes dos mencionados Grupos à regra geral para obtenção da licença de funcionamento. Abandonou, deste modo, qualquer critério racional de diferenciação, revelando-se a medida, neste particular, inconstitucional.
Sob outro ângulo de análise, e para perfeito entendimento da matéria, fazem-se necessárias breves considerações gerais sobre o Direito Urbanístico e as Licenças Urbanísticas, dentre as quais se insere a espécie.
A disciplina positiva do Direito Urbanístico tem raízes na Carta da República, com especialidade no artigo 182 da Constituição Federal, ao dispor, no “caput”, que “A política de desenvolvimento urbano, executada pelo poder público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”, e, em seu § 1º, estabelecendo que “o plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana”.
Com vistas a implementar as mencionadas diretrizes gerais, sobreveio a Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho de 2001, denominada Estatuto da Cidade, fixando “normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”. Determina, para a consecução dos fins dessa lei, a utilização de diversos instrumentos, destacando-se no âmbito municipal aqueles dispostos no artigo 4º, inciso III, dentre os quais salientam-se o “plano diretor” e a “disciplina do parcelamento, do uso e da ocupação do solo”.
No Município de São Paulo, o cumprimento dos mencionados dispositivos constitucionais e da lei federal deu-se pelo advento de dois diplomas legais. O primeiro consubstancia-se na Lei nº 13.430, de 13 de setembro de 2002, que institui o Plano Diretor Estratégico – PDE. O segundo é a Lei nº 13.885, de 25 de agosto de 2004, que estabelece normas complementares ao Plano Diretor Estratégico, institui os Planos Regionais Estratégicos das Subprefeituras, dispõe sobre o parcelamento, disciplina e ordena o Uso e Ocupação do Solo do Município de São Paulo – PRE-LUOS.
Tais instrumentos legais apresentam marcadas inovações em relação ao zoneamento tradicional, definido por Hely Lopes Meirelles como consistindo na “repartição da cidade e das áreas urbanizáveis segundo sua precípua destinação de uso e ocupação do solo” (Direito Municipal Brasileiro, Malheiros, 2003, pág. 532). Pela concepção em vigor, o zoneamento, além da mera possibilidade de permitir determinado uso, deve levar em conta também os “parâmetros de incomodidade”, estabelecidos nos termos do artigo 213, § 3º, do PRE-LUOS, e constantes dos respectivos Quadros 02/a a 02/i, tais como ruído, carga e descarga, emissão de odores – dentre outros índices de aferição de incomodidades urbanas que a lei especifica –, relacionados a cada ponto da cidade com características estabelecidas na legislação de zoneamento municipal,
No que diz respeito à licença de funcionamento, cabe lembrar, de início, seu conceito jurídico, conforme o define Hely Lopes Meirelles, “licença é o ato administrativo vinculado e definitivo, pelo qual o Poder Público, verificando que o interessado atendeu a todas as exigências legais, faculta-lhe o desempenho de atividades ou a realização de fatos materiais antes vedados ao particular” e também que “a licença resulta de um direito subjetivo do interessado, razão pela qual a Administração não pode negá-la quando o requerente satisfaz todos os requisitos legais para sua obtenção, e, uma vez expedida, traz a presunção de definitividade” (Direito Administrativo Brasileiro, 30ª. edição, Malheiros, pág. 187/188).
O artigo 208 do PRE-LUOS é taxativo no sentido de que “nenhum imóvel poderá ser ocupado ou utilizado para instalação e funcionamento de usos não residenciais – nR, sem prévia emissão, pela Prefeitura, da licença correspondente, sem a qual será considerado em situação irregular”. Já no tocante às edificações, dispõe também o artigo 209 no sentido de que “as edificações serão consideradas em situação regular quando possuírem ‘Habite-se’, Auto de Vistoria, Alvará de Conservação, Auto de Conclusão, Certificado de Conclusão, Auto de Regularização, ou documento equivalente, expedidos pela Prefeitura”.
Portanto, como se vê, a licença de funcionamento deve ser emitida previamente ao exercício da atividade, pois é mero instrumento declaratório, de caráter vinculado, expedido obrigatoriamente no caso de enquadramento da situação fática às disposições legais. Vale dizer: se a edificação for regular – situação devidamente atestada pelos documentos indicados no citado artigo 209 –, conforme para o uso e a atividade a ser instalada atender aos parâmetros de incomodidade, bem como se os demais requisitos objetivos e subjetivos forem atendidos (nos termos da legislação em geral), a licença deve ser obrigatoriamente expedida por tratar-se de ato vinculado da Administração Pública. Como ensina Celso Antônio Bandeira de Melo, “atos vinculados seriam aqueles em que, por existir prévia e objetiva tipificação legal do único comportamento da Administração em face de situação legalmente prevista em termos de objetividade absoluta, a Administração, ao expedi-los, não interfere com apreciação subjetiva alguma”.
A expedição da licença de funcionamento, bem se vê, é ato declaratório e final, não podendo, por sua própria natureza, ficar subordinado a providências do particular – de cumprimento incerto, diga-se –, que poderiam, pelo projeto, vir a ser implementadas em longo período.
Nota-se que a decorrência prática da medida é obstar a fiscalização, criando verdadeira “licença provisória” por, no mínimo, 18 meses, desnaturando o conceito jurídico e técnico dessa figura. A determinação ao Poder Público de, ainda, conceder “prazo conveniente” para a regularização implicará prejuízo à população do entorno, que se veria com o ônus de suportar uma atividade irregular, bem como exporia os próprios freqüentadores a situações de risco, sem que a fiscalização da Prefeitura detivesse base legal para a autuação e fechamento do estabelecimento. Isto configura caso clássico de contrariedade ao interesse público.
Por conseguinte, pelas razões expendidas, vejo-me compelido a vetar integralmente o texto aprovado, com fulcro no artigo 42, § 1º, da Lei Orgânica do Município de São Paulo.
Assim sendo, devolvo o assunto ao reexame dessa Egrégia Câmara, renovando a Vossa Excelência protestos de apreço e consideração.
GILBERTO KASSAB
Prefeito
Ao
Excelentíssimo Senhor
ANTONIO CARLOS RODRIGUES
Digníssimo Presidente da Câmara Municipal de São Paulo
Este texto não substitui o original publicado no Diário Oficial da Cidade de São Paulo