Razões de Veto ao Projeto de Lei nº 440/01
OF ATL nº 11/07
Ref.: Ofício SGP-23 nº 0065/2007
Senhor Presidente
Reporto-me ao ofício referenciado, por meio do qual Vossa Excelência encaminhou à sanção cópia autêntica da lei decretada por essa Egrégia Câmara na sessão de 21 de dezembro de 2006, relativa ao Projeto de Lei nº 440/01, de autoria do Vereador Ítalo Cardoso, que pune toda e qualquer forma de discriminação por orientação sexual.
O texto aprovado determina a punição de todas as formas de discriminação, prática de violência ou manifestação que atente contra a orientação sexual da pessoa homossexual, bissexual, travesti ou transexual. Estabelece os conceitos de “orientação sexual”, definindo-o como um “direito”, bem como o de “discriminação sexual”. Indica um amplo rol de condutas vedadas, às quais comina sanções de natureza civil ou penal, puníveis “alternativa ou cumulativamente” com advertência, multas, suspensões e cassações de alvarás e proibição de contratar com a administração. Como sujeitos passivos das punições indica todo e qualquer cidadão, inclusive os detentores de função pública – civil e militar – e toda organização social ou empresa, com ou sem fins lucrativos, de caráter privado ou público, instaladas no Município de São Paulo.
Não obstante os meritórios propósitos de que se reveste a medida vinda à sanção, que visa erradicar a discriminação no Município, noto que o projeto aprovado, à evidência, desborda da competência municipal prevista no artigo 30 da Constituição Federal, por tratar de matéria concernente aos direitos e garantias individuais, já amparados por ampla legislação federal, tanto de natureza civil, administrativa e trabalhista, quanto de natureza penal, de sorte que me vejo compelido a apor veto total à propositura, por inconstitucionalidade, ilegalidade e contrariedade ao interesse público.
Preliminarmente, deve-se considerar que o Brasil é signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada na Assembléia Geral da ONU em 10 de dezembro de 1948, cujos artigos 1º e 2º estabelecem que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade” e também que “todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação...”
Para dar efetividade a tal desiderato, o Brasil instituiu diversos instrumentos processuais protetores dos direitos humanos, como esclarece Pinto Ferreira, in verbis “no campo da jurisdição constitucional das liberdades, além dos remédios constitucionais do habeas corpus e do mandado de segurança, houve a inovação de vários institutos – como o mandado de injunção, habeas data, mandado de segurança coletivo –, consagrando um sistema normativo de tutela jurisdicional coletiva para permitir a legitimidade dos sindicatos e das entidades associativas em geral, e expressou com dignidade constitucional a ação popular e a ação civil pública, criando o Juizado de Pequenas Causas” (“Os Instrumentos Processuais Protetores dos Direitos Humanos” in Estudos de Direito Constitucional em homenagem a José Afonso da Silva, vários autores, coordenada por Eros Roberto Grau e Sérgio Sérvulo da Cunha, Malheiros, 2003). Além disso, por óbvio, cabem ações individuais de reparação por danos morais a pessoas que se sentirem atingidas em seus direitos individuais.
Diante disso, verifica-se a existência de um completo sistema protetor do cidadão, mediante o qual os conflitos sociais são solucionados, em última instância, pelo Poder Judiciário. É que o direito não pode ser entendido, única e exclusivamente, como impositivo de ordens e comportamentos, mas está vinculado à posição e evolução da sociedade em dado momento histórico. Como ensina Antonio Junqueira de Azevedo, “o direito é um sistema complexo; é sistema porque é um conjunto de vários elementos que se movimentam mantendo relações de alguma constância, e é complexo, porque os elementos são heterogêneos e as relações entre eles são variadas...”; além de complexo, “o sistema jurídico é um sistema de 2ª ordem, isto é, sua existência está em função do sistema maior, o social” (Estudos e Pareceres de Direito Privado, pág. 26, Editora Saraiva, 2004).
No âmbito do Município de São Paulo, atentando particularmente para a espécie, põe-se em relevo o artigo 160 da Lei Orgânica local, ao estabelecer que o Poder Municipal disciplinará as atividades econômicas desenvolvidas em seu território, cabendo-lhe, quanto aos estabelecimentos comerciais, industriais, de serviços e similares, dentre outras, a atribuição de conceder e renovar licenças para instalação e funcionamento, bem como fiscalizar as suas atividades de maneira a garantir que não se tornem prejudiciais ao bem-estar da população. Além disso, no artigo 119 da citada lei orgânica, estipula-se que o Município não concederá licença ou autorização, e as cassará, quando, em estabelecimentos, entidades, representações ou associações, ficar provada a discriminação racial, bem como qualquer outra prática atentatória aos direitos fundamentais, através de sócios, gerentes, administradores e prepostos.
Ocorre que o projeto de lei aprovado afastou-se em muito dos lindes estabelecidos na lei maior municipal, pois tratou de temas que desbordam de tal competência, atingindo matéria de ordem civil, ao definir direitos da personalidade, como o “direito à orientação sexual” definido no artigo 1º, § 1º, no sentido de ser “direito do indivíduo de relacionar-se, afetiva e sexualmente, com qualquer pessoa, independente de sexo, gênero, aparência, vestimenta ou quaisquer outras características”. Ademais, legislou sobre matéria penal, ao criar a figura típica da “discriminação”, conceituando-a no artigo 1º, § 2º, como “qualquer ação ou omissão que, motivada pela orientação sexual do indivíduo, lhe cause constrangimento, exposição a situação vexatória, tratamento diferenciado, cobrança de valores adicionais ou preterição no atendimento”.
A propositura, ainda, estabeleceu um extenso rol de vedações, misturando condutas variadas, algumas que tocam no campo das Liberdades Públicas, garantidas pela Constituição Federal e pelo aparato legal configurador da proteção aos direitos individuais, que reside notadamente em normas federais, especialmente os já citados instrumentos protetores dos direitos humanos, e também o Código Penal e legislação correlata. Tal se verifica nos incisos que vedam “proibir, inibir ou dificultar a manifestação pública do pensamento”, “praticar qualquer tipo de ação violenta, constrangedora, intimidatória ou vexatória, de ordem moral, ética, filosófica ou psicológica”, e naqueles que dizem respeito ao uso de bens e acesso a serviços públicos, ou também ao que dispõe sobre fabrico e comercialização de símbolos discriminatórios. Perceba-se a extrema subjetividade do inciso que veda “realizar qualquer forma de atendimento diferenciado não autorizado por lei”, que poderá, até mesmo, alcançar e proibir todas as promoções comerciais que tenham o intuito de praticar a chamada “fidelização” de clientes, agraciando-os com tratamentos especiais, mediante a concessão de descontos, locais “vips” de atendimento e outras medidas dessa ordem, as quais não são discriminatórias no tocante à orientação sexual, mas estão inseridas na lógica do “marketing”.
Por outro lado, a lei aprovada padece de defeitos no sistema de imposição de sanções, justamente por deficiências na caracterização do tipo de antijuridicidade. Conforme ensina Régis Fernandes de Oliveira, “para que haja a aplicação da penalidade, impõe-se que esteja presente o ‘tipo’, ou seja, ‘o conjunto de elementos de comportamento punível previsto na lei administrativa’ (...) ocorrendo o fato descrito na hipótese da norma, opera-se a subsunção daquele a esta, com o quê se realiza a ‘tipicidade’” (Infrações e Sanções Administrativas, RT, 1985). Daniel Ferreira, por sua vez, na obra Sanções Administrativas (Malheiros Editores, 2001, pág. 66/67), esclarece que “tipo é a descrição do comportamento material, geral e abstrato, contemplado na norma de conduta; típico é o comportamento, individual e concreto, que se subsume à hipotética previsão”. Por sua vez, “antijurídico é o comportamento não conforme, contrário ao devido, frente ao ordenamento normativo; e voluntária é a conduta praticada conscientemente, isto é, com prévia opção de se fazê-la, ou não”.
Pois bem, tais aspectos técnicos não foram observados no texto aprovado, uma vez que, embora tenham sido indicados alguns comportamentos, ensejadores da sanção administrativa, tais indicações foram feitas de maneira extremamente genérica, servindo-se de termos de abrangência demasiada, de sorte a causar dificuldades no momento de aplicação da sanção. Isto se verifica no já citado conceito de discriminação. Com uma figura típica desse jaez haverá amplíssima possibilidade de acusações, muitas certamente infundadas ou motivadas por espírito de emulação, trazendo prejuízos à paz social.
O projeto aprovado, assim, não indica parâmetros objetivos de caracterização das situações que pretende coibir, criando dificuldades intransponíveis para a fiscalização, que não terá condições de aferir se a conduta do agente pautou-se pelo exercício regular do dever funcional ou não. Não fica patente o critério objetivo no tocante à regular gestão da segurança e boa ordem dos estabelecimentos comerciais, exercida legitimamente pelos funcionários contratados para tanto. A administração pública teria que manter fiscais de plantão para realizar flagrantes de discriminação. É de lembrar que o artigo 4º da propositura afirma que “são passíveis de punição, nos termos desta lei, todo e qualquer cidadão, inclusive os detentores de função pública, civil ou militar, e toda organização social ou empresa, de caráter privado ou público, instaladas no Município de São Paulo”. Desse modo, os fiscais municipais estariam, por exemplo, compelidos a autuar o proprietário de imóvel acusado de negar locação a homossexual, a empresa acusada de ter promovido um heterossexual em detrimento de um bissexual, a jornalista cujo texto fosse acusado de discriminatório e, mesmo, a fiscalizar instalações militares. Essas situações ferem o princípio da razoabilidade e impõem à Administração Municipal tarefas que tangenciam a inexeqüibilidade.
Impende registrar, ainda, no tocante aos artigos 2º e 3º do texto aprovado, que esses dispositivos implicam a criação de um verdadeiro órgão de análise das reclamações, no âmbito da Prefeitura, que se constituiria, na verdade, em instância intermediária entre as pessoas supostamente agravadas e os órgãos legitimamente competentes para apreciar a matéria, que são a Polícia e o Ministério Público e, por fim, o Poder Judiciário. Tratar-se-ia, portanto, de usurpação de funções institucionais dos referidos órgãos, a configurar, também, contrariedade ao interesse público, por onerar o Erário com providências a rigor desnecessárias.
Finalmente, quanto à obrigatoriedade de afixação de placa, prevista no artigo 7º da propositura, cabe considerar que o estabelecimento comercial deve obediência a toda a legislação nacional pertinente, não sendo necessária a aposição de uma placa para compelir ao atendimento das leis. Se fosse o caso de aposição de tais indicativos, relativos a um particular direito do cidadão, também deveria haver placas com o rol de todos os demais direitos e deveres de comportamento social, previstos no ordenamento jurídico do país.
Por conseguinte, pelas razões expendidas, vejo-me compelido a vetar integralmente o texto aprovado, com fulcro no artigo 42, § 1º, da Lei Orgânica do Município de São Paulo, devolvendo o assunto ao reexame dessa Egrégia Câmara, renovando a Vossa Excelência protestos de apreço e consideração.
GILBERTO KASSAB
Prefeito
Ao
Excelentíssimo Senhor
ANTONIO CARLOS RODRIGUES
Digníssimo Presidente da Câmara Municipal de São Paulo
Este texto não substitui o original publicado no Diário Oficial da Cidade de São Paulo