CASA CIVIL DO GABINETE DO PREFEITO

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RAZÕES DO VETO AO PROJETO DE LEI Nº 103/2005; OFÍCIO DE 3 de Fevereiro de 2009

Razões de Veto ao Projeto de Lei nº 103/2005

OF. ATL nº 43/09

Ref.: Ofício SGP-23 nº 00110/2009

Senhor Presidente

Reporto-me ao ofício referenciado, por meio do qual Vossa Excelência encaminhou a este Gabinete cópia autêntica do Projeto de Lei nº 103/2005, aprovado por essa Egrégia Câmara em sessão de 18 de dezembro de 2008, de autoria do Vereador Chico Macena, que autoriza a Companhia de Engenharia de Tráfego – CET a exercer as atribuições do Departamento de Operação do Sistema Viário – DSV.

A medida pretende atribuir à CET as competências, prerrogativas e encargos previstos no Código de Trânsito Brasileiro, passando essa empresa a atuar como órgão executivo de trânsito do Município e seu presidente, por conseqüência, a ser a autoridade de trânsito.

Entretanto, a propositura esbarra em óbices constitucionais e legais intransponíveis que inviabilizam sua conversão em lei, na conformidade das razões que passo a aduzir.

O projeto de lei intenta transferir, de uma pessoa jurídica de direito publico interno (Município) para uma pessoa jurídica de direito privado (sociedade de economia mista), a competência para o exercício de uma atividade típica de Estado, qual seja, a regulamentação e a execução da política de trânsito.

Com efeito, a definição de políticas locais na área de trânsito, o funcionamento do sistema como um todo e sua normatização são atribuições típicas de Estado, que somente podem ser exercidas por entidades diretamente integrantes da Administração Pública.

Por esse motivo, a Secretaria Municipal de Transportes - órgão da Administração Municipal Direta ao qual incumbem, por força da Lei nº 7.698, de 24 de fevereiro de 1972, as competências relativas ao trânsito de veículos e ao sistema viário do Município - já conta em sua estrutura organizacional, para o exercício das funções previstas no Código de Trânsito Brasileiro, com o Departamento de Operação do Sistema Viário, órgão executivo municipal de trânsito, cujo Diretor é a autoridade executiva municipal de trânsito, nos termos do disposto no Decreto nº 37.293, de 27 de janeiro de 1998.

De sua vez, a Companhia de Engenharia de Tráfego, sociedade de economia mista que teve sua criação autorizada pela Lei nº 8.394, de 28 de maio de 1976, é entidade da Administração Municipal Indireta criada com os objetivos sociais de planejar e implantar a operação do sistema viário, implantar e explorar economicamente equipamentos e atividades complementares e, ainda, prestar serviços ou executar obras relacionados à operação do referido sistema.

Os agentes da CET funcionam como “longa manus” da autoridade de trânsito, agindo em nome dela em virtude do credenciamento que receberam. Tais agentes praticam meros atos materiais, não detendo a titularidade da atividade pública.

Veja-se, a propósito, a lição de Celso Antonio Bandeira de Mello:

“Registre-se, a final, reiterando o que dantes se disse, que empresas públicas e sociedades de economia mista, quando prestadores de serviço público, sejam ou não concessionárias, embora possuam qualificação jurídica para exercer atividade pública (como é o serviço público), não são titulares de tal atividade, mas apenas do exercício dela.

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O traço nuclear das empresas estatais, isto é, das empresas públicas e sociedades de economia mista, reside no fato de serem coadjuvantes de misteres estatais. Nada pode dissolver este signo insculpido em suas naturezas. Dita realidade jurídica representa o mais certeiro norte para a intelecção destas pessoas”. (in Curso de Direito Administrativo, 19ª edição, Malheiros Editores, 2005, p.185)

Acrescente-se, ainda, que as atribuições cometidas ao DSV envolvem, na maioria das vezes, a polícia administrativa de trânsito, típica atividade de Estado, cuja titularidade é indelegável e intransferível a pessoas jurídicas de direito privado, mesmo que integrantes da Administração Indireta. De fato, é o Diretor do DSV quem lavra, registra e processa o auto de infração, convertendo-o em multa.

Diogenes Gasparini, ao abordar a questão da indelegabilidade da atribuição de polícia administrativa, assim se posiciona:

“Não se imagine violada a indelegabilidade da atribuição de polícia com a execução de atividades materiais prévias e indispensáveis à formalização do ato de polícia por empresas particulares, que alugam e operam certos equipamentos destinados, por exemplo, à fiscalização de trânsito. Nesse caso, sequer se trata de delegação da atribuição de polícia, na medida em que a empresa é apenas, por contrato, prestadora de serviço à Administração Pública, fornecendo-lhe todos os dados e muitas vezes até o auto de infração, obtidos por meio de máquinas de modo preciso e impessoal, para o exercício do poder de polícia. Não há nessa atividade qualquer vontade do representante da empresa contratada, pois tudo é feito por máquina aferida pelos órgãos públicos de controle. Nada mudaria se essas atividades fossem feitas por agentes da Administração Pública.” (in Direito Administrativo, 13ª edição, Saraiva, 2008, p. 137)

Ademais, esclareça-se que exercer o poder de polícia não se encontra dentre as atividades possíveis das sociedades de economia mista, as quais, à luz do artigo 173, § 1o, da Carta Constitucional, somente podem ter duas finalidades: a exploração de atividade econômica ou a prestação de serviços públicos.

Aliás, conforme ensina a professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a atividade de polícia não é espécie de serviço público, posto que, na primeira, a Administração apenas impede a prática, pelos particulares, de determinados atos contrários ao interesse público e, no último, ela executa uma atividade que beneficia os cidadãos (in Direito Administrativo Brasileiro, 21a edição, São Paulo, Atlas, 2008, p.112). Por se configurar medida de restrição de direito, deve o poder de polícia ser aplicado por autoridade administrativa completamente desinteressada, que age com o fim único de atender ao interesse público cuja guarda lhe foi confiada.

Concluindo, a medida aprovada desloca a titularidade de uma função típica estatal para uma pessoa jurídica de direito privado, integrante da Administração Indireta, subvertendo o papel constitucional das sociedades de economia mista, incorrendo em evidente inconstitucionalidade e ilegalidade.

Não bastasse isso, caso a propositura fosse sancionada, a CET passaria a ter interesse econômico na prática de atos administrativos punitivos, os quais, de igual modo, devem ser aplicados por autoridade administrativa isenta, que age tendo em vista o interesse público, sob pena de ofensa aos princípios da moralidade e da impessoalidade, albergados no artigo 37 da Constituição Federal, bem como em evidente contrariedade ao interesse público.

E mais, a alteração cogitada prejudicaria as estruturas dos órgãos afetos ao trânsito, como, por exemplo, as Juntas Administrativas de Recursos de Infrações - JARIs – órgãos colegiados responsáveis pelo julgamento dos recursos interpostos contra penalidades impostas pelo órgão executivo de trânsito – vincular-se-iam não mais ao DSV, mas à CET, com membros e coordenador nomeados pelo presidente dessa empresa e dele recebendo gratificações, a revelar nova violação aos mencionados princípios constitucionais.

Resta patente, ainda, que o texto pretende dispor sobre assunto relacionado à organização administrativa e matéria orçamentária, com nítida interferência nas atividades e estruturas dos órgãos municipais e conseqüentes encargos à Administração Pública, o que é defeso ao Legislativo, a teor do disposto no artigo 37, § 2º, inciso IV, artigo 69, inciso XVI, e artigo 70, inciso XIV, todos da Lei Maior local.

Por conseguinte, sou compelido a vetar integralmente o projeto de lei aprovado, com fulcro no artigo 42, par. 1o, da Lei Orgânica do Município de São Paulo, por inconstitucionalidade, ilegalidade e contrariedade ao interesse público.

Devolvo, pois, o assunto ao reexame dessa Egrégia Casa de Leis, renovando a Vossa Excelência protestos de elevado apreço e distinta consideração.

GILBERTO KASSAB

Prefeito

Ao

Excelentíssimo Senhor

ANTONIO CARLOS RODRIGUES

Digníssimo Presidente da Câmara Municipal de São Paulo

 

Este texto não substitui o original publicado no Diário Oficial da Cidade de São Paulo