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PARECER PROCURADORIA GERAL DO MUNICÍPIO - PGM Nº 12.134 de 2 de Junho de 2020

EMENTA N° 12.134
Processo de responsabilização de pessoa jurídica. Lei federal n° 12.846/13 ('Lei Anticorrupção'). Os termos 'contratos' e 'licitações', previstos no art. 5°, inciso IV, da Lei federal n° 12.846/13, abrangem as parcerias com organizações da sociedade civil (tais como convênios, contratos de gestão, e termos de colaboração, fomento ou acordos de cooperação) e os procedimentos de chamamento público eventualmente prévios a estas.

Processo nº 6067.2019/0021023-3

INTERESSADO: CONTROLADORIA GERAL DO MUNICÍPIO

ASSUNTO: Processo de responsabilização de pessoa jurídica. Lei federal n° 12.846/13. Interpretação da extensão do termo 'contratos', previsto no art. 5°, inciso IV, da lei. Aplicação aos convênios e outras formas de parcerias com entidades da sociedade civil.

Informação n° 588/2020 - PGM.AJC

PROCURADORIA GERAL DO MUNICÍPIO

Coordenadoria Geral do Consultivo

Senhor Coordenador Geral

Trata-se de processo de responsabilização de pessoa jurídica - no caso, o 'IPARTE - Instituto Paulista de Arte e Música', entidade sem fins lucrativos, que celebrou convênio com a Secretaria Municipal de Esportes, Lazer e Recreação (SEME), com repasse de recursos, para a realização de evento esportivo que, segundo apurado, já havia sido integralmente custeado com recursos particulares de membros de entidade religiosa.

Como referido processo foi inaugurado em razão de possíveis infrações ao artigo 5°, inciso IV, alíneas "d", "f" e "g", da Lei Federal n° 12.846/2013, a comissão processante, no curso do procedimento, entendeu por bem formular consulta quanto à aplicabilidade de tais dispositivos legais às parcerias com entidades sem fins lucrativos, como os convênios (caso em análise):

"(...) é imperioso ter-se a certeza do seu prévio cabimento em situações como esta tratada no presente PAR, devendo ser elucidada a definição da extensão da aplicabilidade, ou não, da expressão 'contratos', contida no artigo 5°, inciso IV, da Lei Federal n° 12.846/2013, ao objeto especificamente veiculado pelos "convênios" (bem como a acordos, ajustes e outros instrumentos congêneres celebrados por órgãos e entidades da Administração), os quais, outrora, eram previstos com muito poucas definições de aspectos legais no artigo 116 da Lei Federal n° 8.666/1993, mas cujo conteúdo passou a ser posteriormente tratado de forma bem mais robusta, do ponto de vista legislativo, pelo Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC), a partir da edição da Lei Federal n° 13.019/2014, regulamentada pelo Decreto Municipal n° 57.575/2016 no âmbito da Municipalidade Paulistana, chamando a atenção o vasto regramento surgido em torno de todo o instrumental que foi editado para o gênero 'Parcerias', veiculadas a partir das espécies 'Termos de Colaboração', 'Termos de Fomento' e 'Acordos de Cooperação'"

A comissão processante retrata ainda as possíveis controvérsias acerca da questão:

"Também adotando interpretação extensiva, Jefferson Aparecido Dias, em artigo publicado na obra coletiva "Lei Antícorrupção", da Editora JusPodivm, organizada por Jorge Munhós Souza e Ronaldo Pinheiro de Queiroz, igualmente adota um viés interpretativo ampliador a respeito do espectro cognitivo do termo "contratos" do artigo 5°, inciso IV, da Lei Federal n° 12.846/2013, defendendo que "como no caso do inciso IV não existe qualquer adjetivação ao termo contrato, forçoso reconhecer que serão punidas todas as condutas relacionadas aos contratos da Administração e não apenas aos contratos administrativos" (2015, p. 99).

Noutro giro, um certo aprofundamento do estudo em torno das premissas validadoras do direito administrativo sancionador, deixa claro que, ao mesmo tempo em que este concede uma relativa abertura na tipicidade das normas punitivas, em realidade, ele deita as suas raízes na sua vinculação aos princípios da legalidade e da tipicidade, como consectários próprios das garantias constitucionais, sendo certo que a tentativa de aproximação ou mesmo de equivalência entre institutos diversos entre si (contratos e convênios) para fins de punição na seara administrativa parece encontrar óbices postos pela própria jurisprudência, até mesmo pela impossibilidade de interpretação extensiva ou ampliativa destinada à aplicação de sancionamentos por parte do Poder Público: (...)"

A Corregedoria Geral acrescentou que, diante do previsto no artigo 1°, parágrafo único, da Lei Federal n° 12.846/2013, tem-se por indubitável a aplicação da Lei Anticorrupção às entidades do terceiro setor, mesmo quando se relacionam com o Poder Público por meio de convênios e outras formas de parceria, de forma que a dúvida circunscreve-se ao inc. IV do art. 5° da Lei federal. Anotou, ainda, que há de cerca de 40 PAR que envolvem a discussão tratada neste processo.

A d. assessoria jurídica da CGM entendeu, por sua vez, que o inc. IV do art. 5° da Lei Federal n° 12.846/2013 não seria aplicável às parcerias com entidades da sociedade civil:

"Assim, a interpretação literal da legislação traz a primeira razão da inaplicabilidade do artigo 5º, IV da Lei Anticorrupção às organizações sociais já que estas não firmam contratos e nem tampouco lhes são aplicadas todas as regras das licitações públicas, como processo licitatório.

Em regra, as organizações da sociedade civil que firmam as parcerias previstas na Lei 13.019/94 não são selecionadas através de "processo licitatório" mas sim de um "chamamento público", a teor do que dispõe seu artigo 2º XII - chamamento público: procedimento destinado a selecionar organização da sociedade civil para firmar parceria por meio de termo de colaboração ou de fomento, no qual se garanta a observância dos princípios da isonomia, da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos;

Os institutos jurídicos são bem próximos, mas não iguais. De um lado, há "procedimento licitatório público" (ou "processo licitatório") e, de outro, "processo seletivo" (ou "chamamento público"ou "concursos de projetos", como na Lei 9790/99 das OCIPS), entre outras figuras análogas adotadas nas parcerias públicas com as organizações do terceiro setor.

Entendo que tais precisões não decorrem de discussões meramente semânticas. As palavras são distintas justamente para designar realidades diversas. Tanto é que a mesma Lei 13.019/2014 estabeleceu expressamente (art. 77), como um tipo próprio do regime da improbidade administrativa, 'frustrar a licitude de processo licitatório ou de processo seletivo para celebração de parcerias com entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los indevidamente'." (grifos no original)

Anotou, ainda, que:

"Outrossim, noto que a multa administrativa prevista no artigo 6º, caput, inciso I, da Lei Federal n° 12.846/2013 tem como base de cálculo o "faturamento bruto", o que é próprio do universo empresarial.

Por fim, também incabível a publicação do nome da suposta infratora organização social no Cadastro Nacional de Empresas Punidas - CNEP, que dá publicidade às sanções aplicadas com base na Lei anticorrupção pois como o próprio nome indica, se destina às empresas."

É o relato do necessário.

Dispõe o artigo 5° e incisos da Lei federal n° 12.846/13 (grifamos o inciso IV, objeto da discussão neste processo):

Art. 5° Constituem atos lesivos à administração pública, nacional ou estrangeira, para os fins desta Lei, todos aqueles praticados pelas pessoas jurídicas mencionadas no parágrafo único do art. 1°, que atentem contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, assim definidos:

I - prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente público, ou a terceira pessoa a ele relacionada;

II - comprovadamente, financiar, custear, patrocinar ou de qualquer modo subvencionar a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei;

III - comprovadamente, utilizar-se de interposta pessoa física ou jurídica para ocultar ou dissimular seus reais interesses ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados;

IV - no tocante a licitações e contratos:

a) frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo de procedimento licitatório público;

b) impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de procedimento licitatório público;

c) afastar ou procurar afastar licitante, por meio de fraude ou oferecimento de vantagem de qualquer tipo;

d) fraudar licitação pública ou contrato dela decorrente;

e) criar, de modo fraudulento ou irregular, pessoa jurídica para participar de licitação pública ou celebrar contrato administrativo;

f) obter vantagem ou benefício indevido, de modo fraudulento, de modificações ou prorrogações de contratos celebrados com a administração pública, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação pública ou nos respectivos instrumentos contratuais; ou

g) manipular ou fraudar o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados com a administração pública;

V - dificultar atividade de investigação ou fiscalização de órgãos, entidades ou agentes públicos, ou intervir em sua atuação, inclusive no âmbito das agências reguladoras e dos órgãos de fiscalização do sistema financeiro nacional.

Como lembrado pela Corregedoria Geral, o parágrafo único do art. 1° do diploma legal ('Aplica-se o disposto nesta Lei às sociedades empresárias e às sociedades simples, personificadas ou não, independentemente da forma de organização ou modelo societário adotado, bem como a quaisquer fundações, associações de entidades ou pessoas, ou sociedades estrangeiras, que tenham sede, filial ou representação no território brasileiro, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente') determina o âmbito de incidência subjetiva da lei, albergando, de forma expressa, as fundações e associações, que não possuem natureza empresarial. Debate-se, portanto, apenas a aplicação do inc. IV do art. 5° - que trata das infrações em licitações e contratos - às parcerias comumente celebradas entre o ente público e tais entidades. Em suma: quando a norma cita 'licitações' e 'contratos', abrange o 'chamamento público' e parcerias tais como 'convênios', ou ainda os 'termos de colaboração', 'de fomento' ou 'acordos de cooperação'?

Durante muito tempo, a doutrina majoritária brasileira entendia que os convênios, mesmo quando celebrados com entidades privadas, não constituiriam contratos, ao argumento de que, enquanto nos primeiros os interesses das partes seriam coincidentes, nos segundos os interesses seriam contrapostos. Segundo Hely Lopes Meirelles:

"Convênio é acordo, mas não é contrato. No contrato, as partes tem interesses diversos e opostos; no convênio, os partícipes tem interesses comuns e coincidentes. (...) Por essa razão, no convênio, a posição jurídica dos signatários é uma só e idêntica para todos, podendo haver, apenas, diversificação na cooperação de cada um, segundo as suas possibilidades para a consecução do objetivo comum, desejado por todos. Diante dessa igualdade jurídica de todos os signatários do convênio e da ausência de vinculação contratual entre eles, qualquer partícipe pode denunciá-lo e retirar a sua cooperação quando o desejar, (...)." (Direito Administrativo Brasileiro. 14ª Ed.. São Paulo: Malheiros, 1989, p. 354).

Mais recentemente, neste mesmo sentido, podemos citar, por todos, Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2001), que manteve sua posição nas edições mais recentes do seu manual (Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2019).

Nos últimos anos (ou mesmo nas últimas décadas), esta posição - que, aliás, nunca foi totalmente pacífica - tem sido questionada, e parece-nos que, atualmente, a maior parte da doutrina considera ajustes como os convênios, contratos de gestão, ou os acordos previstos no MROSC (Lei federal n° 13.019/14), como espécies do gênero 'contrato', da mesma forma que ocorre com outras espécies do mesmo gênero, tais como os contratos de concessão (de bens, serviços, florestas públicas), contratos de parceria empresarial, contratos de parceria previstos na Lei federal n° 10.973/04 ('Lei da Inovação'), etc. Referindo-se ao argumento tradicionalmente empregado pela doutrina para distinguir convênios de contratos, Gustavo Magalhães afirma que "existe duplo equívoco da doutrina ao fixar essa premissa, haja vista que: (1) a contraposição de interesses (no sentido apontado pela doutrina tradicional) não é condição de existência do contrato; (2) nos convênios, os interesses das partes não são comuns" (MAGALHÃES, Gustavo Alexandre. Convênios Administrativos. São Paulo: Atlas, 2012, p. 173).

Tais argumentos são desenvolvidos por Odete Medauar:

"Quanto à natureza, parte da doutrina publicista pátria distingue os convênios e consórcios dos contratos. Para facilidade de redação se invocam, a seguir, os convênios, aplicando-se o exposto, quanto à natureza, aos consórcios públicos. Segundo essa linha doutrinária, diferenciam-se do seguinte modo, em essência: a) no contrato há interesses opostos; no convênio há interesses convergentes; b) o contrato realiza composição de interesses opostos; o convênio realiza conjugação de interesses; c) no contrato há partes: uma que pretende o objeto (exemplos: obra, serviço) e remunera; a outra que visa ao preço; no convênio não há partes, mas participes com as mesmas pretensões; d) nos contratos há obrigações recíprocas, o que falta nos convênios.

Vários argumentos em oposição a tais diferenças poderiam ser expostos. Serão mencionados somente alguns. Quanto aos interesses, a presença do Poder Público num dos polos levaria a raciocinar que o interesse público necessariamente será o fim visado pelos convênios e contratos administrativos; por outro lado, no caso de convênios celebrados com particular poder-se-ia argumentar que este não atua com fim de interesse público, havendo, então, interesses contrapostos; por um e outro raciocínio, não se fixa a distinção. E ainda: nas situações de contratos e convênios entre entidades estatais é difícil separar as duas figuras, porque o interesse público aparece como denominador comum. Além do mais, no setor privado há contratos de sociedade em que o interesse dos sócios ou cotistas é comum (não havendo contraposição), e revestem-se de natureza contratual.

No tocante à remuneração, nem sempre nos contratos administrativos uma das partes remunera a outra, como ocorre na concessão de serviço público, na concessão de serviço antecedida de obra, em que inexiste preço como contraprestação recíproca. Bem mais peculiar se apresenta a concessão para radiodifusão sonora e por imagem, na qual nem existe tarifa paga pelo usuário, e tais tipos incluem-se entre os contratos administrativos.

Parece igualmente difícil raciocinar em termos de existência ou inexistência de obrigações recíprocas para diferenciar os contratos dos convênios e consórcios. Os convênios implicam, claramente, encargos recíprocos; por exemplo: num convênio entre uma Secretaria Estadual de Educação e uma Prefeitura para construção de uma escola, cabendo à primeira a obra e à segunda o oferecimento do terreno, há encargos recíprocos para ser atingido o resultado.

A dificuldade de fixar diferenças entre contrato, de um lado, e convênio e consórcio, de outro, parece levar a concluir que são figuras da mesma natureza, pertencentes à mesma categoria, a contratual. A característica dos convênios e consórcios está na sua especificidade, por envolverem duas ou mais entidades estatais ou pelo tipo de resultado que pretendem atingir com o acordo firmado. O mesmo vale para os consórcios. Daí a Lei n° 11.107/2005 ter caracterizado os consórcios públicos como contratos. E, ainda, o teor do art. 4°, XII, da mesma lei, relativo ao direito do consorciado, quando adimplente com suas obrigações, de exigir o pleno cumprimento das cláusulas do contrato de consórcio." (Direito Administrativo Moderno. São Paulo: Fórum, 2018, p. 233)

Fernando Dias Menezes de Almeida acentua que "usualmente, os convênios praticados pela Administração dão margem a uma situação jurídica subjetiva de obrigações recíprocas entre as partes, em regra envolvendo prestação de serviços, buscando afastar o maior rigor legalmente previsto para a celebração de contratos (...). Ou seja, o convênio é, no Brasil, no mais das vezes, instrumento para a criação de situação subjetiva - ainda que envolvendo interesses convergentes - e, nesse aspecto, merece receber o mesmo tratamento jurídico do contrato (no sentido estrito que lhe dá tradicionalmente a doutrina)" (Contrato Administrativo. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 243 e ss.). E arremata:

"Enfim, a distinção entre convênios e contratos não apenas não possui um fundamento relevante em termos de consequencias jurídicas, como pode levar a conclusões indesejáveis1" (ob. cit., p. 245).

Carlos Ari Sundfeld e Rodrigo Pagani de Souza acentuam que "o fenômeno da assemelhação das modernas parcerias entre o Estado e o Terceiro Setor com contratos de prestação de serviços, enquanto processo inacabado, precisa ser levado adiante e às suas últimas consequências. Tais parcerias precisam ser reconhecidas como contratos" (SUNDFELD, Carlos Ari; SOUZA, Rodrigo Pagani de. As modernas parcerias públicas com o terceiro setor. Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 11, n.43, jan.-mar., 2011, versão digital).

Seguimos, portanto, a linha contemporânea quanto ao tema, para concluir que convênios e outras parcerias com entidades sem fins lucrativos para a execução de um serviço (aí incluídos o contrato de gestão com organizações sociais; os termos de parcerias com OSCIPs; os termos de colaboração, termos de fomento e acordos de cooperação com organizações da sociedade civil em geral) constituem espécies de contratos.

Se é assim, há que se perquirir se a Lei federal n° 12.846/13, por alguma razão, ao se referir a 'contratos' no inc. IV do art. 5°, procurou, explicita ou implicitamente, afastar as parcerias com entidades sem finalidade lucrativa. Não vislumbramos, entretanto, no referido diploma legal, esta intenção.

Primeiro porque, conforme já acentuado, o parágrafo único do art. 1° prevê expressamente tais entidades como destinatárias da lei, e é sabido que elas se relacionam usualmente com o Poder Público por meio de tais parcerias (embora não lhes seja vedado firmar contratos como os previstos na Lei federal n° 8.666/93). Se extirparmos toda a sorte de parcerias do escopo do inc. IV do art. 5°, reduziríamos fortemente a amplitude do diploma legal.

Segundo, atualmente boa parte das relações entre o Estado e a inciativa privada faz-se por meio de parcerias com o terceiro setor. Segundo o IPEA, entre 2010 e 2018, só a União transferiu 118 bilhões de reais para organizações da sociedade civil (este valor contabiliza apenas os empenhos diretos da União para as OSCs, não abrangendo valores transferidos do orçamento da União para Estados e Municípios, que executam projetos de OSCs com recursos federais)2. No Município, boa parte dos equipamentos públicos nas áreas de saúde, cultura, educação e assistência social são geridos por organizações da sociedade civil.

Terceiro, as parcerias com o terceiro setor, por serem mais flexíveis, demandam interação constante com gestores públicos, ampliando a discricionariedade do Estado, e, como também são regidas por um sistema de custo do serviço (em oposição ao regime de preço), que deve ser constantemente fiscalizado pelo Poder Público, oferecem grandes riscos para a prática de corrupção, riscos estes que merecem ser monitorados e enfrentados.

Considerando este panorama, não parece fazer sentido, sob uma interpretação literal, sistemática ou teleológica do diploma legal, afastar as parcerias com o terceiro setor da incidência do inc. IV do art. 5°. O fato da multa aplicada no PAR ser, ordinariamente, baseada no faturamento, não impede que as associações sejam multadas com base na Lei Anticorrupção, pois, para além da disposição expressa do parágrafo único do art. 1°, as entidades civis não empresariais também possuem faturamento. E convém lembrar que a própria Lei Anticorrupção prevê, no §4° do art. 6°3, a solução para os casos em que não houver ou não for possível aferir o faturamento da pessoa jurídica apenada. Também não dificulta a responsabilização de entidades civis sem fins lucrativos, o disposto no art. 22 da Lei, que cria o "Cadastro Nacional de Empresas Punidas - CNEP, que reunirá e dará publicidade às sanções aplicadas pelos órgãos ou entidades dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário de todas as esferas de governo com base nesta Lei", pois, embora o cadastro tenha 'empresas' no nome, não impede a inserção de outras pessoas físicas ou jurídicas punidas. O próprio Município de São Paulo já inscreveu no cadastro entidade sem fins lucrativos punida pela Lei Anticorrupção.

Por fim, pelas mesmas razões, acreditamos que o termo 'licitação', referido pelo mesmo inciso IV do art. 5°, abrange os 'chamamentos públicos' prévios ao entabulamento das parcerias previstas no MROSC ou em outras normas legais.

Lembre-se, a propósito, que a Lei Anticorrupção é anterior ao MROSC, que previu a obrigatoriedade de chamamento público prévio às parcerias por ele regidas. Antes, grade parte das parcerias eram firmadas sem qualquer processo seletivo prévio.

Da mesma forma que as parcerias do MROSC são espécies do gênero 'contrato', o chamamento público nela previsto é espécie de 'licitação', que o legislador preferiu conferir um nome diverso. Trata-se de um processo seletivo, competitivo, para a adjudicação do objeto (no caso das parcerias, geralmente a execução de um serviço) a alguém, tendo como fundamento critérios objetivos. Todos os princípios da licitação aplicam-se ao chamamento público, cuja diferença mais marcante com a licitação prevista na Lei federal n° 8.666/93 talvez seja a ausência de competição quanto ao preço - mas mesmo isso não pode ser generalizado, eis que o concurso tampouco prevê competição de preço e, no chamamento, apesar de não haver preço, a adequação do valor e dos custos planejados constitui critério seletivo, nos termos do art. 27 da Lei federal n° 13.019/144.

Ainda, do ponto de vista do combate às fraudes e à corrupção, qual seria a diferença entre a situação de duas empresas que agem em conluio em uma licitação ou de duas entidades em conluio em um chamamento público? Em ambos os casos, há tentativa de frustrar o caráter competitivo do certame, fraudando o procedimento público de seleção.

Por fim, vale anotar que não encontramos decisões judiciais, do TJ-SP ou dos Tribunais Superiores, que tratassem da questão. No futuro, caso a jurisprudência se firme em sentido contrário ao aqui preconizado, nossa posição precisará ser revista. Porém, até lá, cremos que o Município tem fortes argumentos para defender, em juízo, a tese aqui exposta.

Sub censura.

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São Paulo, 02/06/2020

RODRIGO BRACET MIRAGAYA

Procurador Assessor - AJC

OAB/SP n° 227.775

PGM

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De acordo.

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São Paulo, 03/06/2020

TICIANA NASCIMENTO DE SOUZA SALGADO

Procuradora Assessora Chefe - AJC

OAB/SP 175.186

PGM

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1 Neste ponto, o autor esclarece que "não se nega a distinção entre convênios e diversas espécies de contratos (...). A distinção específica entre, por exemplo, convênio e contrato de prestação de serviço existe, assim como existe distinção específica entre, por exemplo, contrato de concessão de serviço público e contrato de obra pública. O que se está negando é a exclusão da figura do convênio de um gênero convencional, ou contratual em sentido amplo."

2 http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/9331/1/TD_2483.PDF

3 § 4° Na hipótese do inciso I do caput, caso não seja possível utilizar o critério do valor do faturamento bruto da pessoa jurídica, a multa será de R$ 6.000,00 (seis mil reais) a R$ 60.000.000,00 (sessenta milhões de reais).

4 Art. 27. O grau de adequação da proposta aos objetivos específicos do programa ou da ação em que se insere o objeto da parceria e, quando for o caso, ao valor de referência constante do chamamento constitui critério obrigatório de julgamento.

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Processo nº 6067.2019/0021023-3

INTERESSADO: CONTROLADORIA GERAL DO MUNICÍPIO

ASSUNTO: Processo de responsabilização de pessoa jurídica. Lei federal n° 12.846/13. Interpretação da extensão do termo 'contratos', previsto no art. 5°, inciso IV, da lei. Aplicação aos convênios e outras formas de parcerias com entidades da sociedade civil.

Cont. da Informação n° 588/2020 - PGM.AJC

PROCURADORIA GERAL DO MUNICÍPIO

Senhora Procuradora Geral

Encaminho, a Vossa Senhoria, manifestação da Assessoria Jurídico-Consultiva desta Coordenadoria Geral, que acompanho, no sentido de que os termos 'contratos' e 'licitações', previstos no art. 5°, inciso IV, da Lei federal n° 12.846/13, abrangem as parcerias com organizações da sociedade civil (tais como convênios, contratos de gestão, e termos de colaboração, fomento ou acordos de cooperação) e os procedimentos de chamamento público eventualmente prévios a estas.

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São Paulo, 03/06/2020

TIAGO ROSSI

Coordenador Geral do Consultivo

OAB/SP 195.910

PGM

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Processo nº 6067.2019/0021023-3

INTERESSADO: CONTROLADORIA GERAL DO MUNICÍPIO

ASSUNTO: Processo de responsabilização de pessoa jurídica. Lei federal n° 12.846/13. Interpretação da extensão do termo 'contratos', previsto no art. 5°, inciso IV, da lei. Aplicação aos convênios e outras formas de parcerias com entidades da sociedade civil.

Cont. da Informação n° 588/2020 - PGM.AJC 

CONTROLADORIA GERAL DO MUNICÍPIO

Senhor Controlador Geral

Encaminho, a Vossa Senhoria, parecer da Coordenadoria Geral do Consultivo desta Procuradoria Geral, que endosso, no sentido de que os termos 'contratos' e 'licitações', previstos no art. 5°, inciso IV, da Lei federal n° 12.846/13, abrangem as parcerias com organizações da sociedade civil (tais como convênios, contratos de gestão, e termos de colaboração, fomento ou acordos de cooperação) e os procedimentos de chamamento público eventualmente prévios a estas.

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São Paulo, 04/06/2020

MARINA MAGRO BERINGHS MARTINEZ

PROCURADORA GERAL DO MUNICÍPIO

OAB/SP 169.314

PGM

Este texto não substitui o original publicado no Diário Oficial da Cidade de São Paulo