Memorando n° 084/2018-ATL III (TID n° 17313568)
INTERESSADO: CASA CIVIL - GABINETE DO PREFEITO
ASSUNTO: Projeto de lei. Estabelecimentos de entretenimento e lazer. Cobrança diferenciada em razão do gênero.
Informação n° 077/2018-PGM.AJC
PROCURADORIA GERAL DO MUNICÍPIO
ASSESSORIA JURÍDICO-CONSULTIVA
Senhor Procurador Assessor Chefe,
A Assessoria Técnico-Legislativa da Casa Civil do Gabinete do Prefeito solicita manifestação sobre o Projeto de Lei n.° 427/17, de autoria do Legislativo e com aprovação já realizada pela Câmara. A propositura versa sobre a cobrança diferenciada entre homens e mulheres na entrada de casas noturnas, boates, shows, bares e demais estabelecimentos similares (artigo 1°). O artigo 2° estabelece as sanções pelo descumprimento da imposição (multa administrativa, suspensão temporária das atividades e cassação do alvará de funcionamento).
A ATL fez juntar cópia da Nota Técnica n° 2/2017/GAB-DPDC, do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
É o relatório do quanto necessário.
A lei aprovada pelo Legislativo merece uma análise por duplo prisma. O primeiro deles envolve a competência municipal para legislar sobre o assunto.
Não se pode deixar de reconhecer a interface do tema com a exploração da atividade econômica pela iniciativa privada, matéria afeta ao direito civil e ao direito comercial, cuja competência legislativa é privativa da União (artigo 22, inciso I, da Constituição Federal).
Sob uma outra perspectiva, extrai-se da propositura o seu desiderato: implantação do princípio da isonomia entre homem e mulher, notadamente no âmbito das relações de consumo envolvendo estabelecimentos de lazer e entretenimento (casas noturnas, boates, shows, bares etc). A própria nota técnica do Ministério da Justiça, apresentada pela ATL, foi elaborada internamente pela Secretaria Nacional do Consumidor (SENACON), tendo sido feita expressa alusão ao seu escopo: "cumprimento dos princípios basilares da Constituição Cidadã, como o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da isonomia/igualdade nas relações de consumo"1.
Conforme a Constituição Federal (art. 24), a matéria referente à relação de consumo (incisos V e VIII) integra a órbita da competência legislativa concorrente. Sobre a compostura de tal atribuição legiferante, convém evocar a posição que atribui aos Municípios, a despeito de sua não inserção no "caput" do art. 24, a competência para suplementar a legislação federal e estadual. É o que dispõe expressamente o art. 30, inciso II, da Carta Magna. Trata-se de lição sedimentada, dispensando maiores digressões.
Convém apenas destacar que tal atribuição não está dissociada do quanto previsto no art. 30, inciso I, que relaciona a competência legislativa dos Municípios a assuntos de interesse (preponderantemente) local. É o que salienta Regina Maria Macedo Ney Ferrari, para quem "o art. 24 refere-se apenas à União, Estados e ao Distrito Federal, não incluindo nesse elenco a figura do Município, admitindo a competência suplementar apenas em relação aos Estados. O art. 30, II, veio, de certa forma, suprir a falha do art. 24; não criando competência para o Município, mas admitindo que ele tenha competência legislativa suplementar da legislação federal e estadual, naquilo que couber, ou seja, dentro dos assuntos de interesse local "2.
No mesmo sentido aponta Fernanda Dias Menezes de Almeida, em digressão sobre a competência legislativa concorrente à luz da competência suplementar do Município:
"O próprio artigo 30, II, esclarece que a legislação municipal suplementar ocorrerá no que couber. É preciso, pois, verificar quando cabe essa legislação. Preliminarmente, diríamos que só cabe a suplementação a assuntos que digam respeito ao interesse local."3
Tal compreensão encontra correspondência em inúmeros pareceres desta Assessoria Jurídico-Consultiva, a exemplo daquele vertido na Informação n.° 501/2012-PGM.AJC (Ementa n.° 11.596) e na Informação n.° 1.663/2006-PGM.AJC (Ementa n.° 11.019).
Partindo de tal premissa, convém averiguar se o projeto de lei em comento apresenta peculiaridades que permitam inseri-lo em assuntos de interesse preponderantemente local, compreendidos como aqueles que encontram assento nas peculiares necessidades do Município, distinguindo-se, portanto, dos interesses de envergadura mais lata, de nível regional ou nacional.
A propósito disto, entende-se que inexiste interesse local que justifique o tratamento da matéria no âmbito municipal. A prática reputada discriminatória que se pretende vedar encontra reverberação de âmbito nacional, assumindo uma tal abrangência que exclui a possibilidade de edição de lei local sobre o assunto. Tanto assim que o próprio Ministério da Justiça e Segurança Pública, por meio de sua Secretaria Nacional de Consumo, expediu a Nota Técnica n.° 2/2017, assinalando uma diretriz interpretativa acerca da cobrança diferenciada4.
Diante disto, sob qualquer ângulo que se vislumbre, conclui-se que falece competência municipal para legislar sobre a matéria.
O segundo prisma refere-se ao mérito da propositura.
A propósito, vale consignar que a interpretação vertida na Nota Técnica n.° 2/2017 já foi objeto de impugnação judicial, merecendo destaque duas ações civis públicas movidas pela Associação Brasileira de Bares e Restaurantes, um no Estado de São Paulo, o outro, em Goiás.
No âmbito da demanda ajuizada em São Paulo, houve a concessão de liminar, determinando a abstenção da aplicação de qualquer sanção em razão da Nota Técnica n.° 2/2017 (autos n°° 5009720-21.2017.403.6100, em trâmite pela 17a Vara Federal Cível). Trata-se de decisão não revertida pelo Tribunal Regional Federal da 3a Região5. Já na ACP movida no Estado de Goiás, igualmente houve deferimento do pedido liminar, de modo a se afastar a aplicação de referida nota (autos n.° 1002885-82.2017.4.01.3500, 6a Vara Federal).
Ambas as decisões baseiam-se, em seus contornos gerais, na mesma razão. Para além da cobrança diferenciada não representar abuso configurador de medida discriminatória inconstitucional, a imposição de tal medida constitui verdadeiro atentado ao princípio da livre iniciativa.
Embora se reconheça a polêmica e a própria complexidade jurídica que a questão suscita - sobretudo nos tempos atuais, assentados em polarizações e acirramentos das posições -, tende-se a concordar com as posições que vem prevalecendo judicialmente.
De acordo com as justificativas apresentadas na Nota Técnica n.° 2/17, a abolição da cobrança diferenciada combate a discriminação de gêneros, afastando uma condição degradante da mulher, utilizada de "forma a atrair consumidores masculinos para aquele ambiente" e considerada verdadeiro "produto que pode ser usado para arrecadar lucros, ou seja, obter vantagens econômicas".
A posição, contudo, é questionável, inclusive pela ótica jurídica da proporcionalidade, nomeadamente do subelemento da adequação (aptidão para atingir determinada finalidade). Assim, não se pode associar a subtração da cobrança diferenciada à diminuição da discriminação contra o gênero feminino. Sequer haveria o atingimento do desiderato pretendido. Pelo contrário, a cobrança desigual pode potencialmente servir para reforçar a igualdade. A propósito, vale a pena transcrever trecho da decisão liminar proferida pelo juízo federal de São Paulo:
"É sabido que em nossa sociedade, infelizmente, a mulher ainda encontra posição muitas vezes desigual em relação ao homem, a exemplo da remuneração salarial, jornada de trabalho e voz ativa na sociedade. Sem mencionar, inclusive, os casos de violência doméstica e abusos sofridos no cotidiano, seja por palavras, gestos ou atitudes diversas. Tal fato pode ser reforçado pelas inúmeras notícias que nos deparamos no dia a dia, tais como as de abusos sofridos em meios de transporte a até em locais de entretenimento (bares, restaurantes e casas noturnas). Nesta realidade social, a diferenciação de preços praticada pelos estabelecimentos pode ter como objetivo a possibilidade de participação maior das mulheres no meio social"
Por outro lado, a cobrança desigual afronta valores prestigiados constitucionalmente, como a livre iniciativa e a livre concorrência, fundamentos da ordem econômica brasileira (artigo 170 da Constituição Federal). Afastar do empreendedor privado a possibilidade de definir ofertas ao seu público, mesmo que em razão do gênero, manieta um dos baluartes da atividade empresarial.
Conforme bem exposto na manifestação do Ministério Público Federal, por meio da Procuradoria da República do Estado de Goiás, na ação civil pública acima referida, a "oferta com estímulo ao consumo é a máquina motora da atividade econômica". Transcreva-se a seguinte passagem:
"No mercado de consumo atual são comuns as ofertas promocionais para atrair segmentos de consumidores: as crianças, os jovens, os estudantes e também as mulheres; são salões de beleza, casas de depilação, clínicas médicas, academias. Já existe até o serviço Uber e vagões de metro especiais para mulheres. Seriam tais ofertas discriminatórias e abusivas?
A oferta com estímulo ao consumo é a máquina motora da atividade econômica. Porquanto, não se pode dizer que este marketing do privilégio para mulheres seja discriminatório em prejuízo da dignidade da pessoa humana. Assim, ao oferecer a brinquedoteca para crianças, o restaurante quer, na verdade, atrair os pais consumidores e não discriminá-los na sua dignidade humana, fazendo-os de 'isca'para o consumo."
Por fim, convém destacar que a Constituição Federal não prestigiou o intervencionismo estatal desmesurado tendente a afetar a liberdade individual e a autodeterminação da pessoa. A despeito disto, verifica-se amiúde por parte de diversos parlamentos brasileiros uma tentativa de impor às pessoas comportamentos tidos como protetivos, de modo a desconsiderar a autonomia da vontade em tal seara. Algumas situações são paradigmáticas, a exemplo da norma que impediu restaurantes de ofertar sal aos seus clientes6.
Conforme exposto pelo juízo federal de Goiás no âmbito da ação civil pública que impugnou a nota técnica acima referida, as "agências estatais devem abrir mão do desejo de dirigir a vida das pessoas, ou seja, que as pessoas, em suas relações pessoais, não se vejam forçadas a aceitar a vontade de uma entidade coletiva movida por um suporto critério mais elevado de julgamento da realidade".
Em vista do exposto, seja por razões de competência legislativa, seja por razões do próprio mérito, propõe-se o veto integral à propositura.
São Paulo, 19 de janeiro de 2018.
RODRIGO BORDALO RODRIGUES
PROCURADOR DO MUNICÍPIO
OAB/SP 183.508
PGM
Memorando n° 084/2018-ATL III (TID n° 17313568)
INTERESSADO: CASA CIVIL - GABINETE DO PREFEITO
ASSUNTO: Projeto de lei. Estabelecimentos de entretenimento e lazer. Cobrança diferenciada em razão do gênero.
Cont. da Informação n° 063/2018-PGM.AJC
PROCURADORIA GERAL DO MUNICÍPIO
Senhor Procurador Geral
Transmito, com meu endosso, o parecer elaborado pela Assessoria Jurídico-Consultiva desta Coordenadoria Geral do Consultivo a propósito do Projeto de Lei n.° 427/17.
São Paulo, 22/01/2018.
TIAGO ROSSI
COORDENADOR GERAL DO CONSULTIVO
OAB/SP 195.910
PGM
Memorando n° 084/2018-ATL III (TID n° 17313568)
INTERESSADO: CASA CIVIL - GABINETE DO PREFEITO
ASSUNTO: Projeto de lei. Estabelecimentos de entretenimento e lazer. Cobrança diferenciada em razão do gênero.
Cont. da Informação n° 063/2018-PGM.AJC
Casa Civil/ATL
Senhora Assessora Especial
Encaminho o presente com a manifestação da Coordenadoria Geral do Consultivo, que acompanho integralmente, propondo-se o veto integral do Projeto de Lei n.° 427/17.
São Paulo, 22 /01/2018.
RICARDO FERRARI NOGUEIRA
PROCURADOR GERAL DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO
OAB/SP 175.805
PGM
Este texto não substitui o original publicado no Diário Oficial da Cidade de São Paulo