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PARECER PROCURADORIA GERAL DO MUNICÍPIO - PGM Nº 11.729 de 19 de Junho de 2018

EMENTA N. 11.729
Artigo 16 da Lei Municipal 16.488/2016. Impossibilidade de retroação dos seus efeitos materiais (tipificação de condutas e respectivas penas) aos atos praticados anteriormente à sua vigência, que agravem a condição do indiciado. Aplicação imediata das normas processuais a todos os processos em curso, como mecanismo de prevenção e combate ao assédio sexual na Administração Pública.

processo n° 2013-0.066.483-1

Informação n. 796/2017-PGM.AJC

INTERESSADO: Departamento de Procedimentos Disciplinares -PROCED.

ASSUNTO: Sindicância administrativa. Superveniência da Lei Municipal n. 16.488/2016. Definição da infração disciplinar assédio sexual. Alteração de competência para investigação e processamento dos servidores. Interpretação do art. 16 da Lei.

PROCURADORIA GERAL DO MUNICÍPIO

ASSESSORIA JURÍDICO-CONSULTIVA

Senhora Procuradora Assessora Chefe

Trata este processo administrativo de sindicância instaurada para apuração da prática de assédio sexual, que teria sido praticada por um integrante da Guarda Civil Metropolitana, contra outra integrante da mesma corporação.

Houve a instauração de Inquérito Administrativo (fl. 212), por meio de ato ratificado à fl. 398, adaptado às disposições da Lei Municipal n. 16.488/2016.

O despacho de ratificação foi precedido do relatório de fls. 380/390 da Corregedoria Geral do Município, que sugeriu, entre outras medidas, a remessa de todos os processos referentes a assédio sexual à Controladoria Geral.

Baseando-se nas peculiaridades do caso e na aplicação intercorrente da Lei Municipal 16.488/2016, o Departamento de Procedimentos Disciplinares formulou a consulta de fls. 401/409, que suscita deliberação quanto à aplicação do art. 16 da Lei Municipal n. 16.488/2016 aos fatos praticados antes de 13 de julho de 2016, ainda que sob o aspecto procedimental.

PROCED emitiu pronunciamento valorativo prévio.

Entendeu que o artigo 16 da Lei Municipal 16.488/2016 não permite a retroação da lei nos seus efeitos materiais, isto é, que os tipos delitivos nela previstos, bem como as respectivas penas, somente podem ser aplicados aos fatos ocorridos após a sua vigência.

Também defendeu a inaplicabilidade da lei aos procedimentos em curso, cuja própria existência é colocada em dúvida, eis que os procedimentos iniciados no regime anteriormente vigente submetiam-se a normas próprias e vinculadas, inclusive quanto ao estabelecimento de competências, e que alterações supervenientes poderiam violar o princípio do juiz natural.

A primeira conclusão é irretorquível.

O art. 6° da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro estabelece a eficácia imediata e geral da lei, com preservação do ato jurídico perfeito, do direito adquirido e da coisa julgada, destacando o princípio tempus regit actum.

Os fatos jurídicos são regidos pelas normas vigentes no momento de sua ocorrência; os efeitos jurídicos que deles decorrem são constituídos, então, no regime temporalmente coincidente.

As normas disciplinares, por sua feita, têm natureza penal, tanto na sua estrutura quanto no escopo: descrevem as condutas tipificadas como infrações disciplinares, definem os seus elementos objetivos e subjetivos e as sanções correspondentes.

Sobre elas devem incidir os mesmos princípios estabelecidos nos direitos e garantias fundamentais, entre eles o da retroatividade benéfica: "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu." (art. 5°, XL, da Constituição Federal).

A regra geral é a da irretroatividade, aplicando-se a "loi plus douce" quando o indiciado puder se beneficiar da pena menor, o que, como bem acentuado por PROCED, não ocorre no caso concreto: "a partir do momento em que a Lei Municipal n. 16.488/2016 tipifica a infração disciplinar do assédio sexual (art. 22), que pode ou não coincidir com a conduta descrita na Lei Penal, e prevê as penalidades administrativas a que está sujeito o agente público, acrescentando, inclusive, a pena de multa (art. 62, 111), não me parece que a lei possa retroagir para alcançar fatos ocorridos antes de sua publicação, seguramente quanto aos seus aspectos materiais."

Nesse sentido, deve prevalecer a conclusão do Departamento de Procedimentos Disciplinares: a Lei n. 16.488/2016 não pode ser aplicada aos fatos ocorridos antes de sua vigência, no que diz respeito aos seus elementos materiais, isto é, a tipificação do ilícito administrativo e das penas equivalentes.

PROCED também defende a tese de que a lei não tem aplicação imediata nos processos pendentes. Entende que as disposições procedimentais são estritamente vinculadas à nova conduta tipificada, o que é denunciado pela redação do art. 9° da Lei n. 16.488/2016, ao fazer referência às "disposições desta lei"; com base nesta interpretação, "não seria possível existirem 'procedimentos disciplinares em curso' sobre o assédio sexual definido nos termos da Lei n. 16.488/2016, se a infração foi tipificada em 13 de julho de 2016."

Em função desta exegese, e da possível violação às normas de competência e ao princípio do juiz natural, concluiu PROCED pela inaplicabilidade do art. 16 aos procedimentos disciplinares em curso e também àqueles que tratem do molestamento sexual definido na Lei Municipal n. 11.846/95, que foi revogada.

Esta tese não deve prevalecer, embora sejam respeitáveis os argumentos que a amparam.

A expressão "desta lei" que figura no art. 9° teria o sentido defendido por PROCED, caso se referisse a procedimentos dele diretamente decorrentes, ou aos "procedimentos disciplinares desta lei", o que não resiste à interpretação gramatical. O que se pretendeu é aplicar as disposições da Lei Municipal n. 11.846/2016 a todos os procedimentos em curso, que apurem a ocorrência do assédio sexual em sentido lato, e não estrito.

Os parágrafos do art. 9° negam aquela exegese e confirmam a última: o § 1° se refere a "todos os casos" de denúncia de assédio sexual; o § 2° acrescenta expressamente os procedimentos em curso na Guarda Civil Metropolitana, que terão trâmite inicial na Controladoria Geral; e o § 3° é dirigido a "todos os requerimentos ou denúncias."

Enfim, as normas processuais têm aplicação imediata, nos termos do art. 6° da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e devem ser aplicadas a todos os processos em curso, relacionados à apuração do assédio sexual em sentido lato, quer com base nas Leis Municipais 8989/79 e 11846/95, quer em normas em branco que transportam definições do Código Penal, como é o caso da Lei Municipal 15.530/03.

A outra interpretação retira do art. 16 da Lei todos os seus efeitos, solução que é rejeitada pela técnica hermenêutica, a exemplo da antiga lição de Carlos Maximiliano, "... prefere-se a inteligência que torna eficazes e acordes com o bom-senso as disposições duvidosas, e portanto exequível a obrigação ou ainda, "se de uma exegese resulta nulo ou praticamente inútil o ato, ao todo ou em parte, e de outra não, adota-se a última" ("Hermenêutica e Aplicação do Direito", Ed. Forense, 11a Ed., p. 348).

Há outras razões, além daquelas decorrentes da interpretação gramatical e lógica.

A interpretação segundo a finalidade social corrobora a conclusão aqui exposta.

A aplicação das normas processuais a todos os procedimentos em curso é conduzida pela necessidade de assegurar a efetividade da apuração, de preservar a vítima e a higidez dos atos investigativos.

O escopo é evidenciado de maneira expressa, direta, nos artigos 1° e 3° da Lei n. 16.488/2016, que descrevem o objeto a ser tutelado - "prevenção e combate ao assédio sexual" - e os mecanismos ou políticas a serem criados.

O art. 14, ainda que de forma indireta, segue a mesma orientação.

Isto permite atrair a aplicação da "Teoria do Diálogo das Fontes", idealizada pelo Professor da Universidade de Helderberg, Erik Jamie, e que, embora criada como método alternativo à solução das antinomias aparentes no Direito Internacional, presta-se para a interpretação jurídica sistemática.

Na coletânea "Diálogo das Fontes", Bruno Miragem defende a aplicação ampliada da Teoria, que busca e permite responder a duas questões: "a.- a identificação de um critério para identificação do conflito de leis; b.- a oferta de critérios para a solução do conflito. Da mesma forma, como é próprio de qualquer método de interpretação sistemática, organiza fontes no sentido da identificação e do preenchimento de lacunas." Ob. Cit, p. 79/80).

A jurista Cláudia Lima Marques, que transportou brilhantemente a Teoria para o Direito Brasileiro, acentua a sua aplicação favor debilis, de maneira a coordenar valores de proteção da pessoa vulnerável.

E, na p. 31 da obra citada, no artigo intitulado "Um tributo a Erik Jaime", assim se manifesta:

"Como os critérios da escolástica eram três - hierarquia, especialidade e anterioridade - esta nova visão deve ter "diálogos": a nova hierarquia, que é a coerência dada pelos valores constitucionais e a prevalência dos direitos humanos; a nova especialidade, que é a ideia de complementação ou aplicação subsidiária das normas especiais, entre elas. com tempo e ordem nesta aplicação, primeiro a mais valorativa, depois, no que couberem, as outras; e a nova anterioridade, que não vem do tempo de promulgação da lei, mas sim da necessidade de adaptar o sistema cada vez que uma nova lei é inserida pelo legislador."

Sob este enfoque, a inserção da Lei n. 16.488/2016 no ordenamento municipal é servil ao escopo maior, calcado nos valores constitucionais e direitos humanos, que é a "prevenção e combate ao assédio sexual", e um dos mecanismos para alcançá-lo é a aplicação aos procedimentos disciplinares em curso, prevenindo e evitando o temido desvio de finalidade.

Não é só; a Lei 16.488/2016 foi regulamentada pelo Decreto n. 57.444, de 11 de novembro de 2016, cujo artigo 17, abaixo transcrito, se prestou para declarar a interpretação dada pelo Poder Executivo, na sua aplicação e cumprimento:

Art. 17: As regras previstas na Lei n. 16.488, de 2016, e neste decreto sobre procedimentos disciplinares e competências aplicam-se aos procedimentos disciplinares que apuram fatos relativos a ocorrências de assédio sexual anteriores à sua publicação.

É evidente que o decreto não tem efeitos absolutos; caso contrário, o presente estudo pecaria pela tautologia ou pior, teria sido conduzido pelo sofisma da petição de princípio.

Mas não se pode menosprezar este relevante efeito dos atos regulamentadores.

O Magistrado Federal e jurista José Carlos Francisco acentua, na obra "Função Regulamentar e Regulamentos" (Forense, 2009, p. 216)que

"... a função regulamentar serve como orientação e limitação para os atos do agente público, que, em vez de se pautar pelos preceitos amplos e significativamente gerais e abstratos da lei, deve se valer das normas mais detalhadas contidas nos regulamentos, limitando seu âmbito de ação e proporcionando a impessoalidade ou isonomia, segurança, eficiência e validade de seus atos concretos." (p. 216).

O art. 17 do Decreto afastou as dúvidas que contaminavam o art. 9° da Lei 16.488/2016 e confirmou a interpretação lógico-gramatical do mesmo dispositivo, ao especificar que a Lei se aplica aos procedimentos disciplinares que apuram fatos relativos a ocorrências de assédio sexual anteriores à sua publicação.

Não há também violação ao princípio do juiz natural, em função da alteração superveniente da competência, a qual não induz à anulação ou revisão automática dos atos decisórios não terminativos, proferidos nos expedientes em curso, e não atinge as decisões condenatórias ou absolutórias dos processos já findos.

Dessa forma, as normas processuais previstas na Lei 16.488/2016, a exemplo daquelas contidas nos artigos 4°, 9°, 10, 11, 12 e 14, devem ser aplicadas aos processos em curso.

Isto posto, conclui-se, em relação à aplicação do art. 16 da Lei 16.488/2016, que:

a.- as condutas tipificadas e respectivas penas, previstas na Lei 16.488/2016 somente podem ser aplicadas aos atos praticados sob a sua vigência, sendo vedada a retroação agravante;

b.- as normas processuais devem ser aplicadas a todos os processos em curso, que apuram fatos relativos a assédio sexual, ainda que anteriores à publicação da lei.

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São Paulo, 19 de junho de 2017.

CELSO A. COCCARO FILHO

Procurador Municipal - PGM.AJC

OAB n° 98.071

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De acordo,

São Paulo, 20 de junho de 2017.

Ticiana Nascimento de Souza Salgado

Procuradora Assessora Chefe-AJC

OAB/SP 175.186

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processo n° 2013-0.066.483-1 

INTERESSADO: Departamento de Procedimentos Disciplinares -PROCED.

ASSUNTO: Sindicância administrativa. Superveniência da Lei Municipal n. 16.488/2016. Definição da infração disciplinar assédio sexual. Alteração de competência para investigação e processamento dos servidores. Interpretação do art. 16 da Lei.

Continuação da Informação n. 796/2017-PGM.AJC

Procuradoria Geral do Município

Senhor Procurador-Geral

Encaminho-lhe o parecer da Assessoria Jurídico-Consultiva, que acolho, e que concluiu que o art. 16 da Lei 16.488/2016: a.- não permite a aplicação retroativa das normas materiais contidas na Lei, como a nova tipificação da prática delitiva do assédio sexual e respectivas penas; b.- obriga a aplicação imediata das normas de caráter procedimental a todos os processos em curso, mesmo aqueles iniciados anteriormente à publicação da Lei, destinados à apuração do assédio sexual, em sentido lato.

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São Paulo,  de junho de 2017

TIAGO ROSSI

COORDENADOR GERAL DO CUNSULTIVO

OAB/SP 195.910

PGM

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processo n° 2013-0.066.483-1 

INTERESSADO: Departamento de Procedimentos Disciplinares -PROCED.

ASSUNTO: Sindicância administrativa. Superveniência da Lei Municipal n. 16.488/2016. Definição da infração disciplinar assédio sexual. Alteração de competência para investigação e processamento dos servidores. Interpretação do art. 16 da Lei.

Departamento de Procedimentos Disciplinares - PROCED.

Senhor Diretor

Encaminho-lhe o parecer da Coordenadoria Geral do Consultivo, que aprovo, no seguinte sentido: a.- o art. 16 da Lei Municipal 16.488/2016 não permite a aplicação retroativa das normas materiais contidas na Lei, como a nova tipificação da prática delitiva do assédio sexual e respectivas penas; b.- obriga a aplicação imediata das normas de caráter procedimental a todos os processos em curso, mesmo aqueles iniciados anteriormente à publicação da Lei, destinados à apuração do assédio sexual, em sentido lato.

Este parecer deverá ser observado por esse Departamento em todos os processos administrativos com o mesmo objeto, inclusive naqueles que se encontravam pendentes desta definição, referidos na parte final do encaminhamento de fls. 401/409.

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São Paulo,  de junho de 2017.

RICARDO FERRARI NOGUEIRA

PROCURADOR GERAL DO MUNICÍPIO

OAB/SP 175.805

PGM

 

 

Este texto não substitui o original publicado no Diário Oficial da Cidade de São Paulo