CASA CIVIL DO GABINETE DO PREFEITO

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Razões do Veto (LEI Nº 14.516 de 11 de Outubro de 2007)

RAZÕES DE VETO

Projeto de Lei nº 495/07

OF ATL nº 160, de 11 de outubro de 2007

Ref. Ofício SGP 23 nº 4607/2007

Senhor Presidente

Nos termos do ofício referenciado, Vossa Excelência encaminhou a esta Chefia do Executivo cópia autêntica da lei decretada por essa Egrégia Câmara na sessão de 5 de setembro de 2007, relativa ao Projeto de Lei nº 495/07, de autoria dos Vereadores Abou Anni, Russomanno, Farhat, Cláudio Prado, Atílio Francisco, Domingos Dissei, Noemi Nonato, Goulart, Francisco Chagas, Carlos Alberto Bezerra Jr. e Aurélio Miguel, que altera e acrescenta dispositivos à Lei nº 10.032, de 27 de dezembro de 1985, alterada pela Lei nº 10.236, de 16 de dezembro de 1986.

Acolho a propositura no tocante à redação conferida, por seu artigo 1º, ao artigo 3º da Lei nº 10.032, de 27 de dezembro de 1985, alterada pela Lei nº 10.236, de 16 de dezembro de 1986, relativamente à composição do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo - CONPRESP, no que se refere à indicação do representante dessa Colenda Edilidade.

Todavia, vejo-me na contingência de apor veto parcial ao projeto aprovado, atingindo todos os seus demais dispositivos, nos termos das considerações a seguir aduzidas.

O texto estabelece um novo procedimento para o referido órgão de preservação, tanto no que diz respeito ao bem propriamente dito quanto em relação a sua área envoltória. Além disso, impede que as resoluções de tombamento alcancem os imóveis e seu entorno que tenham sido objeto de projetos protocolizados anteriormente à abertura do processo de tombamento. Percebe-se, portanto, que incide sobre quatro situações jurídicas distintas, quais sejam, a) a do bem em processo de tombamento; b) a da área envoltória; c) a do direito adquirido à apreciação de projeto anterior à abertura do processo de tombamento e d) a relacionada às áreas enquadradas em ZEPEC.

O exame do conteúdo do projeto aprovado reclama a necessidade de serem feitas observações gerais sobre o instituto da propriedade, suas configurações e limitações, bem como sobre o instituto do tombamento.

O direito de propriedade é garantido pelo artigo 5º, "caput", da Constituição Federal, que inaugura o capítulo dos direitos e garantias fundamentais. No entanto, nos termos de seu inciso XXIII, é determinado que "a propriedade atenderá a sua função social". Outros dispositivos constitucionais estão harmonizados com tal prescrição, como se vê do artigo 170, inciso III (a ordem econômica deve observar o princípio da função social da propriedade), bem como do artigo 182, § 2º (a propriedade cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor).

O artigo 1228 do Código Civil dispõe que o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa. Seu parágrafo 1º, no entanto, explicitando a função social da propriedade, estipula que "o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas". O artigo 1299, por sua vez, relativo ao direito de construir, estabelece que o proprietário pode levantar em seu terreno as construções que lhe aprouver, salvo o direito dos vizinhos e os regulamentos administrativos.

Uma das maneiras pelas quais se preservam os bens portadores de valores peculiares é mediante o instituto do tombamento. Na definição de Lúcia Vale Figueiredo, "tombamento, de maneira singela, é o ato administrativo constitutivo por meio do qual a Administração Pública, ao reconhecer, à luz de manifestações técnicas, que determinado bem se enquadra nos pressupostos constitucionais e legais e, no confronto do caso concreto com os valores resguardados pela Constituição, verifica a necessidade de conservá-lo e determina sua preservação, com a conseqüente inclusão no Livro do Tombo" (Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 7ª edição). Diógenes Gasparini complementa tal conceito, asseverando que "é a submissão de certo bem, público ou particular, a um regime especial de uso, gozo, disposição ou destruição em razão de seu valor histórico, cultural, artístico, turístico ou paisagístico" (Direito Administrativo, São Paulo, Saraiva, 2004, pág. 653).

Trata-se, pois, de um dos modos de intervenção do Estado no direito de propriedade. A matéria relativa ao tombamento tem sua previsão no artigo 216, § 1º, da Constituição Federal, no sentido de que o Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, ou seja, os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem, dentre outros bens, os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. Tal proteção se fará por meio de "inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação".

A competência para legislar sobre a matéria, nos termos do artigo 24, inciso VII, da Constituição Federal, em princípio é atribuída à União, aos Estados e ao Distrito Federal, os quais detêm competência para legislar concorrentemente sobre "proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico". Além desses entes, a teor das disposições constitucionais contidas no artigo 30, incisos I, II e IX, bem como do artigo 23, inciso III, tal competência se estende à esfera local.

No entanto, tratando-se de competência concorrente, é necessária a observância do disposto no artigo 24, § 1º, a respeito das regras gerais estabelecidas pela União Federal. No âmbito da União, o tombamento é disciplinado pelo Decreto-Lei Federal nº 25, de 1937, que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, publicado sob a égide da Constituição Federal de 1937 e recepcionado pela ordem jurídica atual. Dentre outras disposições, seu artigo 10 reza que o tombamento dos bens será considerado provisório ou definitivo, ambos equiparados, conforme esteja o respectivo processo iniciado pela notificação ou concluído pela inscrição dos referidos bens no Livro do Tombo. O artigo 18, por sua vez, estabelece que não se poderá, na vizinhança da coisa tombada, fazer construção que impeça ou reduza a visibilidade.

Deste modo, as normas gerais concernentes ao tombamento e respectiva área envoltória, quando for o caso, já estão estabelecidas nos dispositivos federais, como configuradoras do ato administrativo de abertura do processo de tombamento, bem como de sua declaração final. Registre-se, neste passo, que a área envoltória tem a mesma garantia constitucional de preservação, pois ela é a certeza de que o bem tombado estará engastado em uma faixa de proteção consentânea com suas características próprias. Portanto, aos municípios é vedado considerar a área tombada como destacada da área envoltória. O Município institui seu órgão de preservação, dotando-o de estrutura e pessoal especializado, para a partir daí serem praticados os atos administrativos pertinentes. O órgão que tem competência administrativa para apreciar o tombamento detém idêntica competência para apreciar o que concerne à área envoltória, mediante estudo caso a caso, como consta do artigo 10 da lei vigente.

Na esfera local, a matéria é tratada na Lei nº 10.032, de 27 de dezembro de 1985 (com as modificações introduzidas pela Lei nº 10.236, de 16 de dezembro de 1986), cuja alteração se pretende, a qual dispõe sobre a criação de um Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo. Por esse diploma legal, dentre outras disposições materiais e procedimentais, figura que o Município procederá ao tombamento total ou parcial de bens móveis e imóveis, de propriedade pública ou particular existentes em seu território, pelo seu valor cultural, histórico, artístico, arquitetônico, documental, bibliográfico, paleográfico, urbanístico, museográfico, toponímico, ecológico e hídrico. Além disso, dispõe que o tombamento de qualquer bem cultural ou natural requer a caracterização da delimitação de um espaço envoltório, dimensionado caso a caso por estudos do corpo técnico de apoio. O processo de tombamento será aberto por resolução do CONPRESP, sendo que o bem em exame terá o mesmo regime de preservação do bem tombado, até decisão final do Conselho.

Por ser ato administrativo, o tombamento se insere na função administrativa, que, no dizer de Lúcia Vale Figueiredo, "consiste no dever de o Estado, ou de quem aja em seu nome, dar cumprimento fiel, no caso concreto, aos comandos normativos, de maneira geral ou individual, para a realização dos fins públicos, sob regime prevalecente de direito público, por meio de atos e comportamentos controláveis internamente, bem como externamente pelo Legislativo (com o auxílio dos Tribunais de Contas), atos, estes, revisíveis pelo Judiciário" (op. cit., pág. 34).

Pelo projeto aprovado, o procedimento de tombamento é alterado, tornando-se muito mais rígido: será aberto por resolução do Conselho, por maioria de votos, sendo determinado um prazo peremptório de 180 dias para sua efetivação, sob pena de indeferimento; a resolução final, declaratória do tombamento, passa a exigir o quórum mínimo de dois terços dos membros do Conselho para efetivar-se, devendo ser precedida de no mínimo duas audiências públicas específicas.

O texto dispõe, ainda, pela introdução do artigo 15-A, que a definição da área envoltória e suas eventuais restrições e alterações de parâmetros urbanísticos que constituam matéria afeta ao código de edificações, legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo ou zoneamento, serão formuladas pelo CONPRESP e encaminhadas ao Executivo, no prazo de 30 dias da data da Resolução do tombamento, para serem consubstanciadas em projeto de lei a ser enviado, no prazo de 60 dias, à Câmara Municipal que, por sua vez, terá o prazo de 90 dias para aprovação da propositura. Se não houver apreciação nesse período, prevalecerá a deliberação do referido Conselho com relação ao entorno. Trata-se, portanto, de criação de empeços de difícil transposição, em matéria de natureza cautelar, que requer o máximo de cuidados para que não haja perda da possibilidade de preservação dos bens em análise.

A fixação desse prazo exíguo para a prática do ato administrativo, sob pena de ser considerado prejudicado o procedimento, irá comprometer a viabilidade de apreciação do tombamento, bem como de projetos inseridos nas áreas preservadas. Veja-se, a título de exemplo, o que a propositura prevê em relação às ZEPECs: estabelece, pela inserção do artigo 15-C, que, após 30 dias do protocolo de entrada de projetos de aprovação em tais zonas ou inseridos em áreas envoltórias a bens tombados, sem providências administrativas, fica prejudicada a apreciação do CONPRESP, obrigando-se o prosseguimento do processo de aprovação, junto ao departamento competente para expedição do alvará de execução e aprovação da edificação solicitada. Vale dizer, o transcurso de um diminuto prazo acarretará a perda da possibilidade de preservação do bem nos moldes adequados. Tal possibilidade fica também comprometida na hipótese do novo artigo 15-B, que determina a análise de projetos protocolizados antes da resolução de abertura do processo de tombamento, mediante a aplicação da legislação da época do protocolo.

Por conseguinte, pelo projeto aprovado, ocorreria a subordinação da eficácia de cada ato administrativo de tombamento a ato legislativo futuro. Isto se dá pelo fato de que somente será considerado perfeito e acabado o ato administrativo relativo à área envoltória após a edição de lei futura, a critério do Legislativo. Portanto, não é juridicamente sustentável o perfil de um ato administrativo, como o proposto no projeto aprovado, de natureza híbrida, dupla, em parte efetuado no âmbito do Executivo e em parte complementado no âmbito do Legislativo, mediante projeto de lei que irá tramitar sem a certeza jurídica de que serão seguidos os parâmetros fixados pelo órgão técnico competente.

De outra parte, a propositura acarreta ao Executivo o ônus de dispor de estrutura suficiente para dar conta, no prazo determinado pelo Legislativo, da demanda peculiar a esse tipo de atividade administrativa. Elege, assim, indiretamente, uma das ações prioritárias que a administração deverá adotar, uma vez que ficará tolhida por um prazo peremptório. Nesse campo de atividade administrativa, jamais poderá haver a fixação de prazos terminativos, pois a análise do tombamento de um bem, assim como de sua área envoltória, engloba estudos complexos e especializados, como se vê da mera citação da formação dos profissionais integrantes do corpo de assessoramento, tais como antropologia cultural, saúde pública, pré-história, geoecologia, organização do espaço, ecologia urbana, incluindo-se técnicos dos órgãos de preservação do patrimônio histórico, cultural e ambiental, nos âmbitos federal, estadual e municipal, que poderão ser convidados, em cada caso, a participar das reuniões do CONPRESP. Além disso, deve-se mencionar o próprio debate interno entre os representantes dos diversos segmentos sociais que fazem parte do órgão, expressamente citados no artigo 3º da lei em vigor, oriundos de entidades representativas da Sociedade Civil, conferindo assim um marcante caráter de democracia participativa às deliberações do CONPRESP.

Como se vê, não é com a mera fixação de prazos que se tornará mais ágil o processo de tombamento. A eficiência administrativa decorre de ações gerais tendentes à contínua melhoria dos serviços públicos. Tal melhoria engloba inclusive os serviços culturais de análise e preservação de bens passíveis de serem tombados. Alexandre de Moraes, em sua obra Direito Constitucional (16ª edição, Atlas, 2004), declara que "princípio da eficiência é aquele que impõe à Administração Pública direta e indireta e a seus agentes a persecução do bem comum, por meio do exercício de suas competências de forma imparcial, neutra, transparente, participativa, eficaz, sem burocracia e sempre em busca da qualidade, primando pela adoção dos critérios legais e morais necessários para a melhor utilização possível dos recursos públicos, de maneira a evitar-se desperdícios e garantir-se uma maior rentabilidade social". Portanto, não se mostra cabível a simples fixação de prazo para a solução de matérias de grande complexidade técnica e de variadas ordens de apreciação, que se apresentam em situações de tombamento de bens culturais, por envolverem, como já mencionado, pessoal especializado e laudos técnicos, com múltiplas investigações de aspectos culturais, históricos, artísticos, arquitetônicos, paleográficos, urbanísticos, ecológicos, dentre outros.

De resto, é ilegal a criação de obrigação para o Município de conservação da coisa tombada, como pretende a propositura no artigo 15-C, pela aplicação, na hipótese de o proprietário não dispor de recursos para proceder às obras de conservação e reparação, das regras do Decreto-Lei Federal nº 25, de 30 de novembro de 1937, art. 19, §§ 1º, 2º e 3º. Tais regras, em resumo, obrigam o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional a arcar com os custos de conservação da coisa, ou a desapropriá-la, sob pena de multa se não requerida tal providência, bem como cancelamento do tombamento, a requerimento do proprietário, caso não executadas pelo Poder Público as providências devidas.

A criação das referidas obrigações (conservar a coisa ou desapropriá-la) configura política pública e, assim sendo, insere-se na matéria orçamentária, nos termos da Lei Federal nº 4.320, de 17 de março de 1964, cujo artigo 2º determina que "a Lei de Orçamento conterá a discriminação da receita e da despesa, de forma a evidenciar a política econômico-financeira e o programa de trabalho do Governo, obedecidos os princípios de unidade, universalidade e anualidade". Como imporá ao Poder Público novas atribuições e significativos encargos, que demandarão recursos humanos e materiais para sua consecução, esse comando pressupõe a existência de verbas, importando aumento de despesas sem a indicação dos correspondentes recursos, em desacordo com o artigo 25 da Constituição do Estado de São Paulo e com a Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, em seus artigos 15 a 17.

Finalmente, cabe salientar que a matéria relativa ao tombamento, no âmbito municipal, está sendo objeto de estudos para sua ampla revisão, inclusive quanto ao próprio CONPRESP, sua composição e funcionamento, não sendo recomendável, no presente momento, modificações pontuais nas leis vigentes, sem a pertinente sistematização que tenha em conta as discussões técnicas levadas a efeito nas instâncias administrativas apropriadas.

Por conseguinte, pelas razões expendidas, sou compelido a vetar parcialmente o projeto aprovado, à exceção de seu artigo 1º, com fulcro no artigo 42, § 1º, da Lei Orgânica do Município de São Paulo.

Assim sendo, devolvo o assunto ao reexame dessa Egrégia Câmara, renovando a Vossa Excelência protestos de apreço e consideração.

GILBERTO KASSAB, Prefeito

Ao Excelentíssimo Senhor

ANTONIO CARLOS RODRIGUES

Digníssimo Presidente da Câmara Municipal de São Paulo