Razões do Veto ao Projeto de Lei nº 265/04
Ofício A.T.L. nº 206/06
Ref.: Ofício SGP 23 nº 4291/2006
Senhor Presidente
Pelo ofício acima referenciado, ao qual ora me reporto, Vossa Excelência encaminhou à sanção cópia autêntica do Projeto de Lei nº 265/04 aprovado por essa Egrégia Câmara em sessão de 31 de outubro de 2006, de autoria do Vereador Natalini, que versa sobre a colocação de floreiras de concreto armado nas calçadas da Cidade.
A medida, nos termos de seu artigo 1º, dispõe que “todo e qualquer templo de confissão religiosa ou instituição legalmente constituída voltada para a consecução de objetivos lícitos, instalada no Município de São Paulo, que se considere ameaçada, ainda que potencialmente, pelo terrorismo internacional ou por violência atentatória aos direitos individuais e coletivos assegurados constitucionalmente, poderá colocar nas calçadas que lhe são fronteiriças floreiras de concreto armado, de acordo com o modelo especificado nesta lei, para fins de proteção e segurança”.
Como se vê, ao conceder efetivamente um direito a tais templos e instituições, referido dispositivo padece de evidente imprecisão, implicando extrema generalidade no comando principal do texto normativo, de molde a englobar imensurável quantidade de instituições, haja vista o porte e a diversidade de São Paulo. A propósito, Maria Helena Diniz define o vocábulo “instituição” como associação ou organização com fins beneficentes, religiosos, culturais, científicos e outros (in Dicionário Jurídico, 2ª ed., vol. 2v, p. 997). Nesse conceito estariam, assim, incluídos na esfera de proteção da lei extenso rol de entidades, tais como sindicatos, organizações, não-governamentais, representações diplomáticas, institutos culturais e de pesquisa e universidades.
De igual modo, a expressão "violência atentatória aos direitos individuais e coletivos assegurados constitucionalmente" é tão ampla que perde o significado, abrangendo todos os que estiverem previstos na Carta Constitucional como fundamento para a invocação da lei.
Não bastasse isso, para ser contemplado com o direito conferido pela lei, caso fosse sancionada, bastaria à instituição considerar a si mesma ameaçada, "ainda que potencialmente". Da forma como redigida a proposta - diante da impossibilidade fática de aferir-se condição inserida no campo de subjetividade – resta inviabilizada, até mesmo, a análise pela Administração Municipal da “motivação da iniciativa”, mencionada no § 2º do artigo 1º.
Prosseguindo-se no seu exame, a proposta incorre em vício de iniciativa, vez que administrar bens municipais e legislar sobre gerenciamento do patrimônio público e organização administrativa são tarefas privativas do Executivo, a teor dos artigos 37, inciso IV, 70, inciso VI, e 111, todos da Lei Orgânica do Município de São Paulo. Configura-se, dessa forma, infringência ao princípio constitucional da independência e harmonia entre os poderes, consagrado no artigo 2º da Constituição Federal e reproduzido nos artigos 5º da Constituição Estadual e 6º da Lei Maior Local.
Ademais, a medida se contrapõe a uma série de normas legais vigentes no Município, bem como ao interesse público.
A Lei nº 13.430, de 13 de setembro de 2002 - Plano Diretor Estratégico - estabelece que o passeio destina-se exclusivamente à circulação de pedestres com segurança e conforto (artigo 116); fixa, como diretriz, a ordenação e o controle do uso do solo de forma a combater o uso inadequado dos espaços públicos (artigo 10, inciso VII, alínea "h"); prevê, como objetivos, o direito do cidadão à fruição da paisagem e ao equilíbrio visual entre os diversos elementos que a compõem e o uso do espaço público pelo setor privado em caráter excepcional, subordinando-o a prévio projeto urbanístico, segundo parâmetros legais expressamente discriminados em lei (artigo 91, incisos I, IV e VI).
Diversamente do que dispõe o Plano Diretor, a proposta visa utilizar o passeio para obstaculizar eventuais transgressões a direitos constitucionais, desvirtuando a sua destinação natural e específica de servir para a circulação de pedestres; implica em acréscimo de elementos na paisagem urbana, interferindo no direito de sua fruição e causando desequilíbrio entre os demais elementos; e possibilita à iniciativa privada o uso do espaço público em situações indefinidas.
Demais disso, na conformidade do Plano Diretor, os logradouros públicos devem ser objeto de projetos urbanísticos, harmoniosos entre si, de modo a promover a melhoria da paisagem e o deslocamento seguro de pedestres, não sendo por acaso que o Município vem passando por um processo de recuperação da paisagem urbana com o empenho da Administração Municipal no tocante a promover a "Cidade Limpa". Nesse sentido, a Lei nº 14.223, de 26 de setembro de 2006, confere nova disciplina à ordenação dos elementos que compõem a paisagem urbana.
De sua vez, a Lei nº 13.885, de 25 de agosto de 2004 - que complementa o mencionado Plano Diretor - estatui que a execução dos passeios e a instalação do mobiliário urbano, independentemente da categoria de via em que estiver situado, deverão garantir maior acessibilidade e mobilidade dos pedestres, sobretudo dos portadores de necessidades especiais (artigo 6o).
A seu turno, a citada Lei nº 14.223, proíbe que os elementos do mobiliário urbano obstruam a circulação de pedestres ou configurem perigo ou impedimento à locomoção de pessoas com deficiência e mobilidade reduzida (artigo 23) e o Decreto nº 45.904, de 19 de maio de 2005, estabelece, como princípios a nortear a execução, manutenção e conservação dos passeios e a instalação do mobiliário urbano, a acessibilidade, segurança, desenho que privilegie o trânsito de pedestres, continuidade, utilidade, nível de serviço e conforto (artigo 3º).
A medida aprovada não está, a toda evidência, de acordo com esses princípios consagrados na legislação municipal.
A Secretaria Especial da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida – SEPED, pela Comissão Permanente de Acessibilidade, assinala que os parâmetros fixados na propositura para a construção das floreiras indicam que blocos de concretos com essas dimensões – os quais não atendem a NBR 9050, de 31 de maio de 2004, da ABNT, que trata de acessibilidade – ocasionariam dificuldades às pessoas com mobilidade reduzida, baixa estatura, anões, cadeirantes, crianças e portadores de deficiência visual. E mais: o vão de 60 centímetros entre uma e outra floreira é insuficiente para a passagem ou o giro de pessoa cadeirante.
Ademais, templos e instituições têm obrigação de propiciar aos seus usuários as devidas condições de segurança por meio de suas próprias instalações e áreas livres, não sendo admissível transferir essa atribuição para os passeios públicos, bens de uso comum do povo, já assoberbados por funções bastante complexas, como as de servir para a circulação e o acesso a lotes, compor a paisagem urbana e conter redes de infra-estrutura.
Ressalte-se, também, que as floreiras, as quais se tornariam elementos fixos do mobiliário urbano com 60 centímetros abaixo da linha do solo, prejudicariam a instalação dos cabeamentos no subsolo e a implantação de novas galerias técnicas fundamentais para a infra-estrutura da cidade, providência determinada pela Lei nº 14.023, de 8 de julho de 2005, que obriga o enterramento dos cabos aéreos existentes.
Por último, acrescente-se outra impropriedade técnica constante da medida aprovada: o § 3º de seu artigo 1º impõe a expedição de alvará para as floreiras, quando o correto seria a outorga de permissão de uso. O primeiro ato é vinculado, sempre praticado no caso de atendimento às exigências legais; o segundo é negocial, unilateral, discricionário e precário, exercido, portanto, se observados os critérios de conveniência e oportunidade para o interesse público, distinções essas que não podem ser desconsideradas quando se trata da ocupação do espaço público por particulares.
Pelo exposto, ante as razões apontadas, vejo-me compelido a vetar integralmente o projeto aprovado, por inconstitucionalidade, ilegalidade e contrariedade ao interesse público, com fulcro no § 1º do artigo 42 da Lei Orgânica do Município de São Paulo, devolvendo o assunto à reapreciação dessa Egrégia Câmara.
Na oportunidade, renovo a Vossa Excelência protestos de apreço e consideração.
GILBERTO KASSAB
Prefeito
Ao
Excelentíssimo Senhor
ROBERTO TRIPOLI
Digníssimo Presidente da Câmara Municipal de São Paulo
Este texto não substitui o original publicado no Diário Oficial da Cidade de São Paulo