Processo nº 2015-0.135.274-8
INTERESSADO: SP OBRAS
ASSUNTO: Desapropriação de área necessária à execução do melhoramento público "implantação do Núcleo Habitacional destinado à População de Baixa Renda". Área ocupada por assentamento desordenado. Ajuizamento de ação expropriatória. Novas reflexões sobre o tema ante a peculiaridade do caso.
Informação n° 0919/2015-PGM.AJC
PROCURADORIA GERAL DO MUNICÍPIO
ASSESSORIA JURÍDICO-CONSULTIVA
Senhor Procurador Assessor Chefe
DESAP submete à análise desta PGM procedimento instaurado para ajuizamento de ação expropriatória de imóveis localizados no distrito de Campo Belo que, somando a área total de 9.003,68 m2, são necessários à implantação de "Núcleo Habitacional destinado a população de Baixa Renda", consoante previsto no Decreto de Interesse Social n° 55.853, de 19 de janeiro de 20151. A área, há muito ocupada pela denominada "Favela do Piolho", foi avaliada em R$ 1.580.753,95.
Tendo em vista as múltiplas singularidades da hipótese, o Departamento sugere uma abordagem também singular do tema, no que concerne ao efetivo valor da área e à necessidade de prévio depósito em dinheiro para que o Município postule em juízo a imissão na posse. Caracterizam a hipótese as seguintes especificidades: (a) o imóvel, como adiantado, abriga "assentamento desordenado conhecido como 'Favela do Piolho' que teria sido recentemente atingida por incêndio"; (b) o incêndio provocou a parcial desocupação da area, disso decorrendo que "a diminuição da indenização por tal fator (considerada no cálculo administrativo) poderá vir a não ser expressiva"; (c) o Município pretende, com a desapropriação, promover justamente a regularização fundiária urbana do local em favor das famílias que, conforme assentado nos cadastros de SEHAB, exerciam, sem turbação, a posse do imóvel com animus domini; e (d) pesam sobre os imóveis abrangidos pelo Decreto de Interesse Social expressivas dívidas tributárias e não-tributárias lançadas pelo Município em face dos proprietários dos lotes.
Diante desse quadro, para o que aqui importa, pondera DESAP, em excelente manifestação, que "confirmado que tais ocupantes preenchem os requisitos necessários à concessão de alguma espécie de usucapião, talvez fosse possível promover a ação de desapropriação sem apontar valor algum a título de indenização pela perda de tais imóveis. (...) Seus titulares do domínio, conforme constante do cartório de registro de imóveis, teriam perdido a propriedade do bem. Para estes, o imóvel não seria concreto, nem mesmo existente. Seria uma ficção. (...) Assim se poderia, em tese, ao ajuizar a respectiva ação expropriatória, requerer a imediata imissão na posse do bem."
Assevera, porém, que "seria necessário compor o polo passivo desta (ação expropriatória) com todos os seus respectivos ocupantes e o titular do domínio, conforme constante do registro de imóveis, por cautela".
Merece acolhimento a primeira das proposições, segundo a qual será possível, senão indeclinável, que o Município postule a imissão na posse dos imóveis sem qualquer desembolso, dado o pleno esvaziamento, na hipótese, do conteúdo da propriedade, inclusive na sua dimensão econômica.
Como bem anotado por DESAP, a tese teria o lastro do célebre acórdão relatado em 1994 pelo Desembargador paulista José Osório: "Loteamento e lotes urbanos são fatos e realidades urbanísticas. Só existem, efetivamente, dentro do contexto urbanístico. Se são tragados por uma favela consolidada, por força de uma certa erosão social, deixam de existir como loteamento e como lotes. A realidade concreta prepondera sobre a "pseudo-realidade jurídico cartorária'. Esta não pode subsistir, em razão da perda do objeto do direito de propriedade. Se um cataclismo, se uma erosão física, provocada pela natureza, pelo homem ou por ambos, faz perecer o imóvel, perde-se o direito de propriedade" (Apelação Cível n° 212.726-1-1, TJSP). Colhem-se hoje nos Tribunais Superiores2 os frutos desse julgado seminal, os quais, em certa medida, foram positivados no §4° do art. 1.228 do Código Civil de 20023.
Os proprietários do imóvel, assim, não fazem jus à indenização porque, há muito, foram privados de todos os elementos constitutivos do domínio (caput do artigo 1228 do CC) — na fórmula romana, jus utendi, fruendi, abutendi et rei vindicatio. Qualquer valor que se lhes pague será injusto porque nada têm. A oferta em juízo de valor nenhum estará conforme ao princípio inserto no art. 5º, XIV, da CR.
No que tange à inclusão dos ocupantes da área no polo passivo da ação de desapropriação a ser proposta, cremos que, embora louvável, a cautela de DESAP é demasiada.
O Departamento erige como condição para a propositura, nesses termos, da expropriatória, que os possuidores obtivessem o prévio reconhecimento pelo Judiciário, em ação própria, dos requisitos necessários à concessão da usucapião especial urbana: "Tal providência daria suporte sobremaneira à tese da Municipalidade na direção aqui aventada".
A providência, logo se vê, conspira contra a urgência que orientou a edição do Decreto n° 55.853/2015 e orientará o pedido de imissão na posse. A medida constituiria embaraço prático quase insuperável. O Judiciário costuma amenizar a rigidez das fórmulas processuais, escusando em ações possessórias a identificação e qualificação de multidão ocupante de terreno urbano4. Não há sentido em identificá-la em petição inicial de desapropriação, em que primariamente legitimado o titular do domínio (art. 16 do Decreto-lei n° 3365/41)5, criando-se a priori condição diabólica, de difícil implementação.
Além disso, como bem adiantado por DESAP, não se pretende com a desapropriação promover a remoção dos ocupantes com posse consolidada. Muito pelo contrário, a iniciativa visa precisamente à manutenção desses possuidores no local, oferecendo-lhes moradias dignas, requalificando a área degradada de modo a integrá-la mais harmoniosamente ao seu entorno. O direito dos ocupantes será estabilizado por meio da formalização de instrumentos legais adequados, como a concessão, pelo Município, do correspondente direito de uso.
A ausência de prejuízo neutralizará a eventual indenização pretendida por possuidor na desapropriação ou em demanda própria. Aplica-se à hipótese a jurisprudência, bem anotada por DESAP, construída em desapropriações por interesse social promovidas pelo INCRA visando à regularização fundiária em área rural por meio de retitulação:
"Assim, o Incra viabilizou aos expropriados que efetivamente exerciam a função social em suas propriedades, a continuidade de suas atividades de exploração da terra, com a vantagem da regularização, com título definitivo e sem as incertezas e dúvidas dominiais que o imóvel expropriado oferecia. Como bem consignado pelo magistrado singular - e confirmado pelo Tribunal regional - não houve perda da posse, mas sim a simples convalidacão do título, promovendo, aquela autarquia, a regularização da situação fundiária local. Nessa toada entendo gue o expropriado não tem direito a receber nenhuma indenização, na medida em que 'as concessões de terras devolutas situadas na faixa de fronteira, feitas pelos Estados anteriormente à vigente Constituição, devem ser interpretadas como legitimando o uso, mas não a transferência do domínio de tais terras, em virtude da manifesta tolerância da União, e de expresso reconhecimento da legislação federal' (EDcl no RE 52.331/PR, Tribunal Pleno, Rel. Min. Evandro Lins, DJ de 24.6.1964)." (STJ, REsp 1.043.808, DJe 28/9/2010, destacamos)
"É firme no STJ a orientação de que, havendo tão-somente retitulação do imóvel a seu respectivo posseiro com o reconhecimento e a ratificação do título concedido a non domino, e não se comprovando prejuízo com a concessão do título, não há falar em indenização." (STJ, REsp 925.402, DJe 21/6/2010, destacamos)
A oferta de alternativa habitacional idônea por órgãos municipais também servirá de contraponto à eventual indenização que venha a ser postulada com fundamento na posse: "(...) após a efetivação da remoção, a família da autora foi incluída no Programa Bolsa Moradia, pelo qual ela vem recebendo um auxílio mensal para pagamento de aluguel de outro imóvel, até que seja feito o reassentamento definitivo. Nesse contexto, em que pese o inconformismo do apelante, não se vislumbra a prática do ato que pudesse justificar o direito da autora ao ressarcimento pela perda da posse do bem. Ao contrário, a remoção da família da demandante do imóvel de que sequer era proprietária se amparou em ação legítima do Município, assim excluída a hipótese de perda injusta da posse do bem" (TJMG, apelação 100240756787140011, j. 15/1/2009).
Acresce que a intervenção municipal é motivada pela imperiosa necessidade de mitigar os graves riscos a que os ocupantes da área estão expostos — de natureza social, como demonstram informações tristemente extraídas de julgados criminais do TJSP6, e física, como atestam os incêndios, além de outros desastres, que recorrentemente consomem as habitações precárias de comunidades abandonadas pelo Poder Público.
Nesse passo, a desapropriação parece ser, de fato, a solução urbanística mais adequada para o caso concreto.
Considerando que os efeitos sociais da medida transcendem sobremaneira as limitações do debate jurídico, sugiro que previamente à propositura da ação de desapropriação seja estabelecido contato com o Ministério Público com o objetivo de que a instituição prestigie no nascedouro a tese municipal. O dispêndio de dinheiro público para imissão na posse equivaleria a um pedágio a ser injustamente cobrado do Município que se dispôs a resolver o problema social cevado pela incúria dos titulares do domínio.
Desse modo, sugiro submeter o presente à Secretaria dos Negócios Jurídicos com a proposta de que seja autorizada a propositura da ação de desapropriação exclusivamente em face dos proprietários dos imóveis objeto do Decreto n° 55.853/2015, devendo o Município, dadas as peculiaridades da hipótese, sustentar em juízo a inexistência de valor a ser indenizado e, por consequência, a desnecessidade de depósito para que se lhe defira, de imediato, a imissão na posse da área que, enfim, receberá a atenção habitacional adequada.
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São Paulo, 05/08/2015
ANTONIO MIGUEL AITH NETO
Procurador Assessor - AJC
OAB/SP n° 88.619
PGM
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De acordo.
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São Paulo, 06/08/2015
TIAGO ROSSI
Procurador Assessor Chefe - AJC
OAB/SP 195.910
PGM
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1 Art. 1º Ficam declarados de interesse social, para serem desapropriados judicialmente ou adquiridos mediante acordo, os imóveis particulares situados no Distrito de Campo Belo, Sufaprefeitura de Santo Amaro, necessários à implantação de núcleo habitacional destinado à população de baixa renda, contidos na área de 19.549,16m2 (dezenove mil quinhentos e quarenta e nove metros e dezesseis decímetros quadrados), delimitada pelo perímetro 1-2-3-4-5-6-7-8-9-10-11-12-1, indicado na planta P-32.674-A1, do arquivo do Departamento de Desapropriações, cuja cópia se encontra juntada à fl. 58 do processo administrativo nº 2014-0.285.239-4. (...)
2 "Diante de todo o exposto, com a invasão do imóvel rural, sobre cuja legitimidade não se faz juízo de valor, o direito de propriedade ficou desprovido de praticamente todos os elementos a ele inerentes: não há mais posse, nem possibilidade de uso ou fruição do bem. Direito de propriedade sem posse, uso, fruição e incapaz de gerar qualquer tipo de renda ao seu titular deixa de ser, na essência, direito de propriedade, pois não passa de uma casca vazia à procura de seu conteúdo e sentido, uma formalidade legal negada pela realidade dos fatos". (STJ, REsp ne 963.499, Rei. Min. Herman Benjamin, DJe 14/12/2009, destacamos)
3 Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.(...) § 4º O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.
4 "Reintegração de posse. Imóvel invadido por terceiros. Impossibilidade de identificação dos ocupantes. Indeferimento da inicial. Inadmissibilidade." (STJ, REsp 362.365, DJe 28/3/2005). " Em caso de ocupação de terreno urbano por milhares de pessoas, é inviável exigir-se a qualificação e a citação de cada uma delas." (STJ, REsp 154906, DJ 2/8/2004).
5 "(...) Consoante a jurisprudência do C. Superior Tribunal de Justiça, o expropriado que detém apenas a posse do imóvel tem direito a receber a correspondente indenização. Precedentes REsp 1118854/SP, Rel. Ministra ELIANA CALMON, DJe 28/10/2009; REsp 953.910/BA, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, DJe 10/09/2009; REsp 769.731/PR, Rel. Ministro LUIZ FUX, DJ 31/05/2007 p. 343; REsp 184.762/PR, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, DJ 28/02/2000 2. Agravo regimental desprovido. ..EMEN: (AGA 200902425830, LUIZ FUX, STJ -PRIMEIRA TURMA, DJE DATA:22/04/2010 ..DTPB:.) 3. No entanto, a Colenda Corte firmou o entendimento de que o interesse jurídico a ser demonstrado na assistência simples em Ação de Desapropriação deve corresponder a algum direito real sobre o imóvel. (RESP 200802047515, HERMAN BENJAMIN, STJ - SEGUNDA TURMA, DJE DATA:31/08/2009 ..DTPB:.; RESP 200501489836, DENISE ARRUDA, STJ - PRIMEIRA TURMA, DJ DATA:31/05/2007 PG:00347 ..DTPB:.). O art. 34, parágrafo único, do Decreto nº 3.365/41, dispõe que eventual disputa sobre o domínio deverá ser travada em ação própria, pelo que foi devidamente rechaçada a intervenção no feito pretendida pela nova possuidora, que busca a declaração de usucapião do bem em seu favor em ação diversa." (TRF-2, Apelação 190051011225090, DJ 20/3/2014)
6 "Com a prisão de dois indivíduos, envolvidos com tóxico, a Polícia soube que ocorria tráfico de tóxicos na Favela do piolho, nesta Capital. Durante a noite, os Investigadores Ariovaldo Soares Grul e Augusto Pena dirigiram-se a essa favela e depararam com o Apelante, em uma estradinha. (...)" (TJSP, Ap. Criminal nº 224.991-3/5, j. 18/11/1997)."Eles narram que, realizando patrulhamento de rotina na favela (Favela do piolho), avistaram o acusado saindo de um barraco. Relataram que o réu, ao notar a presença da polícia, voltou imediatamente para dentro do barraco, sendo então abordado pelos policiais. Positivaram, ainda, no interior do barraco, o encontro de uma caderneta com anotações relativas à venda de drogas" (TJSP, Ap. Criminal nº 358.593-2/2-00, j. 10/12/2002). "Ao serem presos, admitiram a tentativa de sequestro e conduziram os policiais até a favela Moor do Piolho onde foi preso em flagrante o comparsa Clodoaldo, que os aguardava no interior do barraco que seria por eles utilizados como cativeiros Ainda, os policiais apreenderam a chave do veículo roubado, localizando esse veículo estacionado nas proximidades do barraco" (Ap. Criminal nº 414.817-3/3-00, j. 8/6/2004). "Em juízo, o apelante Eduardo admitiu que juntamente com Fábio dirigiu-se até a 'Favela do Piolho', para comprar drogas destinadas ao consumo próprio. Disse que pediram ao traficante duas porções de maconha." (Ap. Criminal 1463771/6, j. 10/2/2005). "Narraram que realizavam patrulhamento na Favela do Piolho, lugar conhecido como ponto de tráfico, quando avistaram o apelante com uma mochila e ele, ao vê-los, abandonou-a e correu" (TJSP, Ap. Criminal nº 439.326-3/5, j. 27/6/2005). "Ao narrar a sequência de fatos, o investigador Allan declarou que (...) 'quando passamos pela rua que dá acesso à Favela do Piolho, avistamos o réu em atitude suspeita, pois além de estar falando em um rádio de transmissão, demonstrou nervosismo ao ver a viatura." (Ap. Criminal nº 0029637-65.2008.8.26.0050, j. 22/5/2012). "Segundo consta, policiais militares realizavam patrulhamento na 'Favela do Piolho' e viram os Pacientes comercializando entorpecentes. (...) Indagados, ambos admitiram informalmente que vendiam drogas no local." (HC n° 2110293-18.2014,8.26.0000, j. 27/10/2014)
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Processo nº 2015-0.135.274-8
INTERESSADO: SP OBRAS
ASSUNTO: Desapropriação de área necessária à execução do melhoramento público "implantação do Núcleo Habitacional destinado à População de Baixa Renda". Área ocupada por assentamento desordenado. Ajuizamento de ação expropriatória. Novas reflexões sobre o tema ante a peculiaridade do caso.
Continuação da informação n° 0919/2015-PGM.AJC
SJ
Exmo. Secretário,
Encaminho o presente a Vossa Excelência, pela competência, com a manifestação da Assessoria Jurídico Consultiva desta Procuradoria Geral do Município, cuja conclusão acolho.
Acompanham os PAs 2015-0.135.239-0 e 2015-0.135.251-9.
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São Paulo, 11/08/2015
ANTONIO CARLOS CINTRA DO AMARAL FILHO
PROCURADOR GERAL DO MUNICÍPIO
OAB/SP 162.363
PGM
Este texto não substitui o original publicado no Diário Oficial da Cidade de São Paulo